Título: Bush e o estado de direito
Autor: José Monserrat Filho
Fonte: Jornal do Brasil, 12/02/2005, Outras Opiniões, p. A11

A Carta das Nações Unidas, em vigor desde 1945, hoje ratificada por 191 países, inclusive os EUA, é o tratado internacional de maior apoio em toda a história da humanidade. Em seu artigo 2, § 3, a Carta estabelece que todos países ''deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais''. E no § 4, ela reza que todos os países ''deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas''.

Assim, a Carta das Nações Unidas é o primeiro documento do Direito Internacional que proíbe não só o uso da força nas relações internacionais como também a ameaça de uso da força. Nesta linha, ela reconhece um único meio legal de resolver controvérsias e litígios internacional: os meios pacíficos.

A Carta admite apenas as ações militares realizadas em legítima defesa, na forma fixada em seu artigo 51º: ''Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais.''

É tarefa exclusiva do Conselho de Segurança das Nações Unidas definir a existência de atos de ruptura da paz e de agressão no mundo. Não é tarefa de cada país em particular. Se cada país tivesse o direito de determinar, a seu próprio critério, os atos de agressão, isso criaria um clima de incerteza, instabilidade e desordem. A Carta das Nações Unidas introduziu o conceito de segurança coletiva e de cooperação internacional para se assegurar a paz e a segurança em todo o planeta, respeitados os direitos soberanos legítimos de cada país. Se um ou mais países passam a constituir uma ameaça à paz e à segurança do mundo, as Nações Unidas e só elas - como organização legalizada e legitimada de toda a comunidade internacional - podem e devem agir, com o apoio de todos os países, para enfrentar e debelar esta ameaça.

Por isso, a maioria dos estudiosos de Direito Internacional afirma hoje com toda a razão que as ações terroristas constituem um problema para toda a comunidade internacional e não apenas para os EUA e alguns outros países. Esta visão, justa, sensata e legalmente amparada, tem o apoio claro da maioria dos 191 membros das Nações Unidas, o que está expresso em inúmeras resoluções de sua Assembléia Geral. Daí que esta é a concepção predominante em matéria de estado de direito nas relações internacionais.

Isso tudo merece ser lembrado no instante em que o presidente dos EUA, George W. Bush, ao assumir seu segundo mandato, reafirma sua decisão de atuar de forma unilateral em questões internacionais de relevância para o mundo inteiro. Bush proclama seu ''objetivo último de pôr fim à tirania em todo o mundo''. Por mais nobre que possa ser, em princípio, este objetivo, ele esta fora da competência de qualquer país ou grupo de países em separado. E o país ou grupo de países que agir neste sentido estará cometendo um ilícito ou até um crime internacional, pelo qual poderão responder perante a comunidade mundial, mais cedo ou mais tarde.

Segundo a imprensa, Bush formulou uma ameaça de uso da força nas relações internacionais. Só isso, como vimos no artigo 2 da Carta das Nações Unidas, já é um ato ilegal passível de responsabilidade.

Na realidade, o estado de direito vigente hoje no mundo, mesmo carecendo ainda de muitos aperfeiçoamentos, é muito mais avançado do que pensam alguns. A violência a que tem sido submetido não destrói seus aspectos altamente construtivos e democráticos, que desenvolvem as melhores conquistas do humanismo e precisam ser preservadas com todos os recursos da sensatez e da inteligência dos seres humanos.

*José Monserrat Filho é professor de Direito Espacial