Título: Arquivos abertos
Autor: HÉLIO BICUDO
Fonte: Jornal do Brasil, 28/10/2004, Opinião, p. A11

O episódio das fotografias que ocuparam largo espaço nos meios de comunicação, revelando a prática de tortura em repartições do chamado Dói-Codi, instrumento de segurança do estado ditatorial que então exercia seu poder de forma autônoma, está permitindo a retomada de uma discussão que objetiva a abertura dos arquivos oficiais para que o público possa avaliar, com dados concretos e insofismáveis, o que acontecia nos porões dos órgãos de segurança, indicando, naturalmente, os responsáveis pelas suas lamentáveis práticas, em desrespeito aos direitos fundamentais internacionalmente resguardados.

É nesse ponto, como se costuma dizer, que ''a coisa pega'': o conhecimento das pessoas que violaram aqueles direitos sob o pretexto de assegurar a estabilidade de uma ordem jurídica imposta pelos então detentores do poder.

O argumento de que a lei da anistia beneficiou não só as vítimas do regime político-militar que cerca de vinte anos sujeitou o país, mas por igual seus algozes, é algo que não pode ser aceito porque em desconformidade com o próprio conceito de anistia.

Anistia é concedida às vitimas de um dado sistema político quando de sua extinção, na busca da paz social.

Mas ela não se compadece com sua extensão aos responsáveis pelos crimes praticados pelos agentes do Estado durante sua existência.

Quando isso acontece, como é o caso do Brasil, ao entenderem os hermeneutas da lei de anistia em seu efeito de ''duas mãos'', numa interpretação oportunista do texto em questão, tendo, sobretudo, em vista uma pretendida necessidade de contemporizar para não se chegar a uma reviravolta no processo gradualista imposto pelo poder dominante, não se chega nunca à pacificação buscada por uma anistia que para assim ser qualificada não pode beneficiar autores de delitos contra direitos humanos.

Na medida em que aqueles que prenderam ilicitamente, ou seja, seqüestraram, torturaram ou mataram ou condescenderam com essas práticas, continuam circulando livremente na sociedade brasileira, por vezes, ocupando altos cargos na administração pública, em vários momentos e circunstâncias, desvendam-se os delitos que cometeram perante uma sociedade que pretende encontrar na lei da anistia a justiça que propicia a paz.

Ora, de que vale desvendar delitos se seus autores continuarão impunes?

A esse respeito a Argentina é exemplo a ser refletido, quando até presidentes da República foram submetidos a sanções penais pela participação, direta ou indireta, nos crimes da ditadura militar que ali se instalou nas chamadas ''décadas de chumbo''.

Mas, de qualquer forma, essa abertura se impõe, para que a história seja resgatada e as feridas que ainda permanecem abertas possam ser curadas.

Assim, não procede, a meu ver, o argumento de que não convém reabrir o passado.

Essa suposição, perante a opinião pública, de que realmente acontece em um dado momento da história é fundamental para que se adotem medidas tendo em vista a integridade do Estado democrático de direito.

Elas servem ao Estado, reconhecendo a cidadania como instrumento da própria sobrevivência da democracia.