Título: Caminhos do sertão grande
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2006, Idéias & Livros, p. 1

Quando conheceu Guimarães Rosa perto do rio São Francisco, o vaqueiro Manuelzão só sabia que guiaria um ''doutor'' pelo sertão, para que ele anotasse histórias. Anos depois, quando Grande Sertão: veredas e Manuelzão e Miguilim foram foram publicados, o vaqueiro começou a receber visitas: todos queriam conhecer o guia sertanejo que lhe serviu de inspiração. Manuelzão morreu em 1997, mas as visitas a Andrequicé, distrito de Três Marias, continuam, agora, ao memorial erguido em sua homenagem. Para ouvir os ''causos'', basta aceitar um cafezinho de um dos moradores, entre eles, a filha de Manuelzão, Maria. Ou chegar à Fazenda Santa Catarina, onde o escritor pediu abrigo e se admirou com as flores e animais de Pedro Mendes.

Andrequicé, conta Riobaldo, foi onde ''o Diabo próprio parou, de passagem''. Mas também onde está ''a mais bela vereda'', a de São José, oásis no sertão que anuncia a chegada da Fazenda Santa Catarina. Recebido pelo proprietário Pedro Mendes, Rosa marcou em suas anotações o pernoite no local. O filho de Pedro, Wilson, com 16 anos na época, pouco se lembra do escritor. Conta que o ''pai não sabia que era homem de cerimônias'' e que ele dormiu junto aos vaqueiros. A fazenda, que parece não ter sofrido os efeitos do tempo, recebe visitantes.

- Eles trazem livros e rodam a casa procurando reconhecer o local da história. E sempre perguntam pelo lírio - detalha Wilson, mostrando a flor que representa o ciúme de Diadorim.

No centro de Andrequicé, a 18 quilômetros da fazenda, está o Memorial Manuelzão, onde o vaqueiro morou em seus últimos anos de vida. O espaço é preenchido com fotos, homenagens e sua coleção de canivetes. No quarto de arreio, a sela ainda brilha. Nas paredes, murais bordados representam em imagens a festa de inauguração da capela construída pelo vaqueiro para sua mãe.

Os festejos, eternizados por Rosa no conto Uma história de amor, arrancam sorrisos de Maria, filha de Manuelzão. Ela conta que tudo começou quando a avó, voltando de um enterro, comentou que um lugar arborizado, na região de Sirga, em Três Marias, daria um bom cemitério. Quando ela morreu, Manuelzão construiu uma capela no local, onde a enterrou. Mas a festa de inauguração da igrejinha também rendeu um ''causo''.

- O padre da cidade só aceitava benzer se meu pai doasse o terreno para a igreja. Meu pai achou desaforo: se Deus fez tudo, tudo era bento, por que precisava doar a casa para a igreja? Então, ele convocou um padre franciscano que andava pela cidade para consagrar a capela. De graça - relembra Maria.

Da igrejinha, só resta a estrutura de madeira. Mais resistente ao tempo foi a venda de dona Olga, onde Soropita, protagonista de ''Dão-lalalão'', escutava a novela no único rádio da cidade. E ''ouvia, aprendia-a, guardava na idéia e, retornando ao Ão no dia seguinte, arrepetia aos outros''. Além de Andrequicé e Cordisburgo, o primeiro circuito turístico baseado em literatura, garante a Secretaria de Turismo mineira, ainda há 11 municípios retratados nas histórias rosianas.

Em Curvelo, onde está a fazenda de dona Etelvina, foi a noite em que Guimarães Rosa dormiu dentro de uma forma de rapadura. Seu Antônio, herdeiro do local, ainda guarda os utensílios de fazer o doce. Em Morro da Garça, sede do circuito que abriga a Casa de Cultura do Sertão, há documentos e trabalhos artísticos. A elevação que dá nome à cidade, imponente entre metros e metros de planície, está em O recado do morro descrita como ''pirâmide rasa. Corcova de camelo, às vezes. Às vezes uma tartaruga. Escuro''. Com tantas pistas, não devem faltar leitores no encalço do escritor. Gente da cidade, encantada com as histórias nascidas no ''terreno da solidão''.