Título: 1956: o ano da literatura brasileira
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2006, Idéias & Livros, p. 1

Não teria sido ruim, o ano literário de 1956, se Guimarães Rosa tivesse demorado um pouco mais para publicar Grande sertão: veredas e Corpo de baile. Pensando bem, é até injusto dizer isso: mesmo sem Rosa, 1956 teria sido um grande ano, destinado a mudar a feição da literatura brasileira.

Foi Assis Brasil quem, em torno de 1968, propôs fosse posto nesse ano o marco do que chamou ''nova literatura'' - conceito que delimitava mais um período da nossa história literária, caracterizado por uma autonomia estética em relação às escolas anteriores, não podendo ser compreendido como mais uma fase ou geração do modernismo - como se designaram os ''movimentos'' de 1930 e 1945.

As razões para essa escolha - que Assis Brasil queria estritamente literárias - foram as seguintes: criação do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, surgimento da poesia concreta e publicação de três livros: Contos do imigrante, de Samuel Rawet; Doramundo, de Geraldo Ferraz; e - obviamente - Grande sertão: veredas. Boas razões, como se vê.

É impossível negar, por exemplo, que a poesia concreta tenha provocado uma revolução no próprio conceito de poesia, transferindo seu fundamento oral, rítmico, para um plano - se não secundário - ao menos paralelo, enquanto criava nela a dimensão da imagem.

Para se ter uma idéia do que isso significou, basta lembrar que a poesia foi, historicamente, um produto da oralidade. A épica grega clássica, as cassidas árabes pré-islâmicas, a poesia de cordel, certos cantos épicos africanos (que recentemente passaram a ser escritos) são manifestações indissociáveis da língua falada, do ritmo, da voz. A lírica antiga - que não era nada mais do que letra de música - ou as velhas cantigas dos cancioneiros galego-portugueses também apontam para o caráter essencialmente sonoro, musical, da poesia. E quando surge a lírica moderna (quer dizer, pós-medieval) o fundamento ainda era de base sonora: o metro e a rima. E mesmo com a chegada do verso livre, esse caráter oral não desaparece - porque um poema, no fundo, era para ser lido em voz alta.

A poesia concreta subverteu essa história. Fez algo que o cinema não conseguiu fazer com os gêneros narrativos (como o romance, a novela ou o conto), porque se manteve como narrativa, agarrado à tríade personagem, espaço e tempo. Embora a poesia concreta estivesse destinada, por sua natureza, a esgotar rapidamente suas possibilidades estéticas, o fato é que desde 1956 os poetas brasileiros passaram a refletir com muito mais profundidade sobre a natureza da própria arte.

Os Contos do imigrante de Samuel Rawet são um belíssimo livro, um livro comovente. Não representou, é verdade, uma ruptura radical na nossa história literária, como fizeram os concretistas (e nessa opinião divirjo da de Assis Brasil). Mas isso não lhe tira o mérito, nem a importância. Em 1956, era um livro muito diferente. Hoje, é um clássico da narrativa curta.

A grande arte dos contos de Rawet - além de fundarem a temática judaica na literatura brasileira - está na delicada descrição dos estados íntimos das personagens, em contraponto às vezes muito tênues com situações objetivas. É desse contraste que sobrevém o efeito estético, que não tem impacto nem surpresa: é antes um aprofundamento de uma sensação de exílio, que se esboça desde as primeiras linhas.

Mas o conto brasileiro - senão desde Adelino Magalhães - já vinha num processo de renovação, como provam Galinha cega (1931), de João Alphonsus, João Urso (1944), de Breno Acioli, O ex-mágico (1947), de Murilo Rubião (este sim, me parece, uma experiência mais incisiva) e Alguns contos (1952), de Clarice Lispector - outra magnífica intimista. Por isso, não saberia responder se Osman Lins, por exemplo, quando logo no ano seguinte publicou Os gestos, foi um discípulo direto do influxo de Samuel Rawet.

O ano de Guimarães Rosa foi também o de Geraldo Ferraz. Doramundo, certamente, é um dos nossos melhores romances. Não é realista. Não é fantástico. Não é regional. Não é urbano. A trama parte de uma situação inusitada: numa cidade pequena e perdida, encravada num morro à beira de uma estação ferroviária, o número de homens é muito superior ao de mulheres. Então começam os assassinatos, cometidos secretamente, à noite, contra os homens solteiros, pelos maridos que suspeitam das esposas.

A sensação de absurdo é realçada pela descrição imprecisa do ambiente e pelas mudanças de foco narrativo. Todavia, há algo de imponderável no ar, algo que contradiz o próprio absurdo, como se as forças que levassem ao adultério e ao homicídio fossem naturais, necessárias, previsíveis até. É quando emergem, no fim do livro, as personagens de Teodora (uma adúltera) e Raimundo (um solteiro) - de cujos nomes se forma o título - subvertendo as ''leis'' da cidade com a confissão pública do amor proibido.

Assis Brasil não destacou Corpo de baile, conjunto de novelas de Guimarães Rosa, depois desmembrado em três livros: Noites do sertão, No Urubuquaquá, no Pinhém e Manuelzão e Miguilim. E acho que esqueceu, injustamente, mais três textos: A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho, Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, e Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes.

Campos de Carvalho é um dos autores mais injustamente esquecidos da literatura brasileira. Não compreendo muito bem que processos levam a isso, mas o fato é que A lua vem da Ásia é desses textos que permanecem isolados, quase sem parentesco literário. O narrador parece ser um louco que, inicialmente, julga estar num hotel, depois num campo de concentração e finalmente num hospício. O relato - engraçadíssimo, por sinal - decorre de um processo de busca de identidade. E, no fundo, paira uma certa ambivalência, não se podendo afirmar que a loucura da personagem é um dado da narrativa. Diversamente dos escritores intimistas, como Samuel Rawet e Clarice Lispector, os processos íntimos da personagem-narradora são identificados por suas observações, muito objetivas, embora muito absurdas, do mundo que o cerca. É nisso que reside o valor do livro.

Num outro pólo de renovação da poesia - e, por que não dizer?, do teatro - temos Morte e vida severina, publicada na coletânea Duas águas. João Cabral não era um estreante. Assis Brasil não o inclui entre os renovadores de 1956 certamente por relacioná-lo à geração de 45. Mas acredito que Morte e vida tenha um lugar à parte na obra cabralina, embora derive dos mesmos processos poéticos que a consagraram.

O que torna Morte e vida severina singular é o fato de o texto ser um auto de Natal. Por ser um auto de Natal, se reveste desde o início de uma atmosfera de religiosidade popular. O enredo também tem um forte apelo sentimental - pois o Severino do poema é um retirante que emigra do sertão, vê miséria por toda a parte, toma consciência das mais pungentes injustiças sociais, até se deparar, quando já pensa em suicídio, com a alegria de outros miseráveis como ele, que celebram o nascimento de uma criança. E isso tudo vem dominado pelo ritmo de versos redondilhos - o que acentua ainda mais seu aspecto popularesco.

Mas esse é o milagre: Morte e vida severina correu todos os riscos, mas não tem nada de piegas. A secura, a precisão, o incômodo latente daqueles versos, tão característicos de João Cabral, fazem do auto uma das peças mais belas da nossa poesia.

Para continuarmos com poesia e com teatro, é bom lembrar Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes. Uma grande revolução na nossa literatura dramática já tinha acontecido na década anterior, com o aparecimento de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. Como Nelson fez, por exemplo, com A falecida, Vinicius também chama sua peça de ''tragédia carioca''. Os temas, os recursos estéticos, os projetos ideológicos são muito discrepantes, mas ambos davam ao assunto ''carioca'' um tratamento trágico, escapando do pitoresco e do anedótico.

Orfeu da Conceição transpõe o mito grego de Orfeu e de Eurídice para uma favela do Rio. A tragédia, além de abrir com um dos mais belos sonetos da língua portuguesa (aquele que começa com ''São demais os perigos dessa vida...''), além de fechar também com versos belíssimos, além de toda a sua delicadeza lírica, é a primeira no Brasil escrita especificamente para protagonistas negros, sem que o problema ''cor'' ou ''raça'' seja o tema central - como no caso de Anjo negro (1946), de Nelson.

Mas a literatura não é feita só de obras extraordinárias. Assim, 1956 poderia ainda ser lembrado pelos bons livros que deu, como Boca do inferno, de Otto Lara Resende, Vila dos Confins, de Mário Palmério, O encontro marcado, de Fernando Sabino, ou O tronco, de Bernardo Élis - textos que têm seu lugar no nosso cânone. Como se vê, foi um grande ano. Que ainda teve Guimarães Rosa. Faltava o Flamengo ter sido tetracampeão. Não se pode querer tudo.