Título: Cinema de arte
Autor: Nelson Gobbi
Fonte: Jornal do Brasil, 27/01/2006, Caderno B, p. B1

Boa parte do público de Crime delicado, que estréia hoje em todo o Brasil, pode sair do cinema surpresa, caso compre o ingresso na esperança de assistir a um filme nos mesmos moldes dos longa-metragens anteriores Beto Brant, como Os matadores (1997), Ação entre amigos (1998) e O invasor (2001). Isso reconhece o próprio diretor paulistano de 42 anos. Ao contrário de sua obra anterior, que parte do vibrante universo literário de Marçal Aquino, o novo filme de Brant explora um terreno mais denso, que envolve descobrimento pessoal e entrega, além das múltiplas instâncias das artes plásticas e cênicas. Adaptado do livro quase homônimo Um crime delicado, de Sérgio Sant¿anna, o filme mostra a radical mudança na vida do retraído crítico teatral Antônio Martins (Marco Ricca), motivado por um encontro com a sensual Inês (Lilian Taublib), que vive uma relação ambígua com o pintor José Torres Campana (Felipe Ehrenberg). Para registrar a profusão de emoções que perpassa o triângulo e adentrar no universo descrito em primeira pessoa por Sant¿anna, o cineasta lançou mão de recursos experimentais, como o diálogo com o documental e o investimento em um tempo fílmico menos linear que o do cinema convencional. Ainda assim, para o diretor esse repertório não chega a representar uma ruptura com a linguagem de sua obra anterior. ¿ Crime delicado não se afasta do que fiz antes, mas ele parte de outro mundo. É um filme que não está só na tela, acontece dentro da gente ¿ define Beto.

Ao investir no cinema mais voltado à linguagem que aos números de bilheteria, Brant se alinha a outros cineastas brasileiros que ignoram a cartilha da produção atual do país, na qual a aferição dos sucessos cinematográficos passa necessariamente pelo crivo do borderô. Mas, dentro de um modelo de produção que tem como motor a renúncia fiscal ¿ que contribui com orçamentos de recentes êxitos do chamado cinema comercial, como 2 filhos de Francisco (2005), Cazuza ¿ O tempo não pára (2004) e Carandiru (2003) ¿ e centrado mais nos números que nas imagens, onde estaria afinal o espaço para a experimentação no audiovisual verde-e-amarelo?

Quem responde é cineasta Carlos Reichenbach, autor de clássicos como Amor, palavra prostituta (1981) e o ousado Filme demência (1987):

¿ Uma cinematografia subvencionada como a nossa só tem sentido se tiver espaço para uma produção que busque novas linguagens. Nossa grande perversão é só enxergar o que dá certo em cima de bilheteria, até porque nem podemos falar em termos de cinema comercial no Brasil. A produção popular não existe, o preço dos ingressos é muito alto. Por ser confinado à classe média, o cinema brasileiro não consegue caminhar com suas próprias pernas. Além disso, existe uma questão de expressão cultural, por isso o leque da produção tem de ser o mais aberto possível.

O experimental Júlio Bressane concorda com a necessidade da diversidade na produção cinematográfica. O diretor de Matou a família e foi ao cinema (1969) e Filme de amor (2003) compara o modelo de produção que prioriza o sucesso comercial às teorias geocêntricas que colocavam a Terra no centro do universo e que refutavam qualquer outro olhar a respeito da disposição dos astros.

¿ No Brasil não existe uma indústria, ela é pilotada pela nossa vontade de fazer filmes. O cinema experimental, uma expressão mal avaliada, coloca em evidência a força do plural e da pluridimensionalidade. Só um discurso terrivelmente afásico pode considerar algo absoluto. No universo infinito, todo julgamento é necessariamente determinado por um ponto de vista específico. Uma única fórmula ¿ essa coação que podemos chamar de fenomenologia da intimidação ¿ é um discurso brutal, com mais de cinco séculos de atraso. As bases da cosmologia infinitista já existem e livram o universo das cadeias do geocentrismo ¿ filosofa Bressane.

Para ele, os diretores mais preocupados em estabelecer novas experiências na sétima arte sempre estarão em minoria dentre uma enorme variedade de realizadores, mas nem por isso o Estado deve tratá-los com qualquer distinção, desde que exista a possibilidade de uma produção plural. Já Reichenbach acredita que este determinado tipo de filmes deve contar com o apoio e o incentivo do governo.

¿ A iniciativa privada está sempre interessada em um retorno financeiro, a não ser que o filme tenha um teor institucional. Acho que obras que investem na renovação de visões devem ser feitas em parceria com o Estado, até como uma forma de fazer nossa produção se impor ao que vem de fora, como acontece hoje com algumas das melhores cinematografias mundiais, como é o caso da Coréia do Sul ¿ aponta o diretor.

Reichenbach acentua que a verdadeira elitização do cinema não vem das expressões mais elaboradas, mais sim do preço dos ingressos. Beto Brant faz coro ao discurso:

¿ Dentro desse modelo que se vislumbra globalizado, o apoio à busca de novas expressões é uma questão de soberania. Os donos das corporações de entretenimento sempre estarão mais interessados em dirigir o olhar. Se não produzirmos uma linguagem própria podemos esquecer de onde viemos ¿ sintetiza o cineasta, que espera lançar seu próximo longa, Cão sem dono, atualmente em fase de pré-produção, no início de 2007.

O cineasta e videoartistapaulista Lucas Bambozzi também considera saudável o investimento governamental na elaboração de novos horizontes artísticos para a cinematografia nacional. Contudo, acredita que esta produção continuará existindo mesmo sem o suporte estatal.

¿ Toda indústria precisa de investimento laboratorial, mesmo a fundo perdido para evoluir e alcançar novas perspectivas. Mas estas obras vão continuar acontecendo à revelia dos subsídios, mesmo que a lógica do mercado vença este cabo-de-guerra, já que urge da vontade dos artistas interessados em expandir a linguagem. As experimentações poderiam ser até mais radicais ¿ propõe o diretor dos documentários Restos do ofício e O fim do sem fim.

Para Bambozzi a linguagem experimental e o cinema convencional vêm se aproximando nas últimas décadas:

¿ Assim como a videoarte tem influências de Eisenstein e Vertov, esta nova linguagem vem, aos poucos, sendo absorvida pelo grande público. Há 15 anos, filmes como Time code, de Mike Figgis, ou até Ônibus 174, de José Padilha, teriam mais dificuldades em atrair os espectadores.

Outro jovem talento que utiliza recursos experimentais em seu trabalho ¿ ainda que de forma mais discreta¿ , o curta-metragista Dennison Ramalho teve uma experiência positiva ao levar para o cinema de gênero novas linguagens cinematográficas. Em seus dois curtas Nocturnu e em Amor só de mãe ¿ trama satanista inspirada na música Coração materno, de Vicente Celestino ¿ o universo do terror foi abordado de maneira inovadora.

¿ Nem considero meus filmes experimentais, eles estão mais votados ao cinema de gênero, mesmo. Mas coloquei algumas coisas que não são percebidos logo de cara. Em Nocturnu, que é preto-e-branco e sem som, a sonoplastia desenvolve outras esferas sensoriais. Já em Amor só de mãe, quis brincar grosseiramente com os elementos subliminares: inseri no filme, apenas por alguns frames, cartelas com sigilos de magia negra, pentagramas e invocações em latim ¿ explica Ramalho, mostrando que o cinema experimental brasileiro se renova e busca novos formas de expressão.