Título: Cidadania atenta
Autor: Fernanda L. Carvalho
Fonte: Jornal do Brasil, 10/11/2005, Opiniao, p. A11

Em 1995 foi criada uma rede internacional denominada Social Watch/Observatório da Cidadania. Ela reúne cerca de 400 organizações da sociedade civil, sediadas em 60 países, dedicadas à luta pela erradicação da pobreza extrema e diminuição das desigualdades. Entre suas principais missões está a preparação de relatórios anuais sobre o desenvolvimento social no mundo para servir de instrumento de monitoramento e pressão sobre os governos para que cumpram os compromissos que assumiram nas conferências do ciclo social das Nações Unidas nos anos 90. O relatório de 2005 acaba de ser lançado no Brasil e o panorama revelado nos indicadores e análises nele contidos, à semelhança dos anos anteriores, é desolador. O que se destaca é o pouco progresso na diminuição das imensas desigualdades não só entre nações, mas também entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre diferentes grupos étnicos em cada país.

O relatório mostra que avançamos muito pouco, em todo o planeta, em desenvolvimento social desde 1995 e que os compromissos assumidos pelos governos têm sido mais exercícios de retórica que guias para a ação. Se continuarmos no mesmo passo, nem mesmo as modestas Metas do Milênio, estabelecidas em 2000, a partir da Declaração do Milênio da ONU, serão atingidas.

Entramos no século XXI convivendo com situações dramáticas que incluem retrocessos em indicadores como expectativa de vida, desnutrição, e mortalidade infantil, no Sul da Ásia e na África Subsaariana. Em países como a Eritréia e a República Democrática do Congo, mais de 70% da população sofrem de subnutrição. Em outros, como Bangladesh e Afeganistão, quase metade das crianças menores de 5 anos encontra-se abaixo do peso mínimo recomendado. Em 14 países africanos as taxas de mortalidade infantil são hoje maiores do que há 15 anos.

A situação das mulheres é especialmente grave. Em algumas regiões, elas constituem pelo menos dois terços dos 860 milhões de analfabetos no mundo, em sua maioria vivendo em áreas rurais, na sua maior parte na África, nos países árabes e no Leste e Sul da Ásia. No entanto, o mais chocante são os contrastes, as distâncias em qualidade de vida que se revelam brutalmente e que poderiam ser sintetizadas no fato de que para uma menina nascida no Japão hoje, a expectativa de vida é de 85 anos, enquanto para uma menina nascida em Serra Leone, ela é de somente 36 anos.

No Brasil, o quadro de desigualdades altera-se pouco com o passar dos anos. Repete-se aqui o perfil perverso das desigualdades mundiais no nosso padrão de distribuição de renda e riqueza; na diferença na incidência da pobreza entre as populações negras e brancas; na persistência do pagamento de menores salários às mulheres.

Infelizmente, não há como ignorar que este quadro é reforçado pela implementação de políticas publicas cujo primeiro objetivo não é a eliminação da pobreza extrema e a diminuição de desigualdades pela remoção de suas causas. Embora no Brasil nos últimos anos tenha-se investido mais em alguns programas da área social, como o Bolsa Família, esses programas não enfrentam as estruturas de reprodução das desigualdades e das injustiças sociais. A sucessão de governos preservou o eixo central de políticas públicas que continuam privilegiando os interesses de setores financeiros, concentrando renda e riqueza.

Apesar do processo de conferências da ONU ter produzido poucas transformações concretas, ele acabou tendo um impacto positivo e importante na mobilização da sociedade civil internacionalmente nesses dez anos -- e na sua capacidade não só de crítica mas também de formular propostas. Nesse sentido, os dados e análises apresentados no relatório não devem alimentar desânimos e pessimismos. Lembrando Betinho, quando se comemora os 70 anos de seu nascimento, devemos usar essas informações para alimentar e cultivar a nossa indignação e assim impulsionar a ação cidadã.

*Coordenadora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase