Título: Além do Fato: A síndrome da intervenção
Autor: Marek Antoni Nowicki
Fonte: Jornal do Brasil, 06/11/2005, Internacional, p. A12

Mais de onze anos depois de inspirar um período de guerra que sangrou os Bálcãs e enlutou a Europa, o Kosovo é apresentado em discursos como um exemplo do sucesso do conceito de ¿intervenção humanitária¿. Mas enquanto o Iraque mergulha em uma vertiginosa espiral rumo ao caos e à anarquia, diplomatas e líderes de Estado estão novamente se perguntando se continua sendo apropriado agir a partir de uma aliança. Um conjunto que representa a comunidade internacional unida para intervir na soberania de um país, quando este demonstra claramente sua incapacidade ou falta de interesse em defender seus cidadãos do genocídio, dos crimes de guerra e da limpeza étnica. No centro desse debate se encontra uma doutrina bastante discutida nos meios diplomáticos e de ação humanitária. Trata-se da abordagem intitulada ¿Responsabilidade para Proteger¿. Como o observador indicado pela ONU para o Kosovo nos últimos cinco anos, pude ter a oportunidade única de observar os efeitos posteriores dessa escola, implantada desde a intervenção organizada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), na antiga Iugoslávia, em 1999. Assim, conseqüentemente, o Kosovo foi transformado em um experimento inédito, internacional, de construção de uma sociedade. Uma missão liderada pela Administração Interina da ONU (UNMIK).

Aliás, classificar o que acontece como uma experiência é usar o termo mais adequado. Mais do que isso, o território se transformou em uma placa de Petri (Nota do Editor: base utilizada para fazer cultura de bactérias em laboratórios) para a intervenção internacional. Tendo vivido e trabalhado ao longo desses anos na região para ver os desdobramentos disso, pude concluir que tal experimento ainda requer muita pesquisa antes de ser finalizada pela Otan.

Claramente, a necessidade de uma intervenção internacional em crises é quase sempre específica de uma certa época. Também a necessidade de uma resposta imediata e de justiça legitimada é igualmente requerida. Entretanto, deixando de lado os fatores militares que estão sobre a mesa quando essas intervenções estão sendo consideradas, é de vital importância manter o foco da discussão sobre políticas internacionais em um ponto específico. O rápido deslocamento de uma missão em que haja a combinação entre presença civil e militar é essencial. E isso é especialmente verdadeiro quando o sofrimento humano é causado por um problema entre comunidades, exatamente como no caso do Kosovo.

Um desembarque imediato de uma força civil e militar adequada às necessidades decorrentes do conflito, nos meses imediatamente depois do encerramento da campanha de bombardeios aéreos empreendida pela Otan, em 1999, poderia ter garantido o surgimento de mecanismos de proteção. Nesse caso, as vítimas não se veriam em meio ao vácuo que acabaria permitindo que passassem a perpetradores. Os soldados das tropas de paz da Otan não foram orientados para impedir os seqüestros, desaparecimentos, assassinatos em retaliação, as execuções e a destruição maciça de propriedades empreendidos por grupos formatos sobretudo pelos kosovares de descendência albanesa. Tal comportamento é considerado atualmente como a causa principal da vasta limpeza étnica ao reverso patrocinada pela população não-albanesa (em sua maioria sérvios, os principais derrotados na Guerra da Bósnia, em 1992).

Como resultado dessa negligência, um resíduo social e político nocivo continua a percorrer o Kosovo. Em vez de esfriar o conflito entre comunidades, esse elemento de ódio o mantém quente como nunca. Somando à ausência de um governo civil e de segurança capazes de garantir a cada comunidade sua existência, a falta de mecanismos legais necessários para levar Justiça rápida para crimes cometidos durante e depois da intervenção, criou-se uma tensão adicional. Tão invasiva, de fato, que qualquer tentativa de se iniciar o tão necessário processo de reconciliação nacional está fadada ao fracasso. Não se pode discutir o assunto sem imaginá-lo sendo empurrado cada vez mais para o futuro.

De forma similar, a comunidade internacional devotou ao Kosovo pouco tempo para ajudar os ex-combatentes a enfrentar sua responsabilidade coletiva pelas atrocidades, não importa qual o seu envolvimento. Sem isso, tentativas de melhorar a situação têm o mesmo sentido que construir uma casa sobre dunas de areia.

Esta falta de análise e de planejamento pós-intervenção armada não só é perigosa para as pessoas ostensivamente salvas; é contraproducente. A menos que uma intervenção humanitária seja estruturada da forma que possa garantir também uma segurança básica, os antagonismos subjacentes que inspiraram a intervenção em primeiro lugar serão simplesmente reforçados, não reduzidos.

Assim, seis anos depois de a operação ser deflagrada pela Otan, o Kosovo parece mais distante da estabilidade e da paz social do que antes. A despeito das freqüentes garantias oferecidas pelas autoridades da ONU, de que o território caminha na trilha da reconciliação e da verdade, militares indicam que existem planos de manter uma presença a longo prazo na região de forma a garantir que o processo político possa ser concluído com sucesso.

Isso remete a um outro ponto-chave: uma estratégia de saída que possa ser trabalhada é tão importante para o sucesso de qualquer intervenção humanitária quanto as táticas de invasão. Se uma operação dessa monta deve ter chances reais de cumprir os objetivos, critérios claros para o que se constitui como sucesso se fazem necessários desde o início. Só com as coisas sendo feitas às claras será possível chegar a um final aceitável para o engajamento dos atores internacionais. No Kosovo, tal clareza sempre esteve ausente e como resultado, ONU e Otan não têm a menor idéia de quando ou como ambas as instituições poderão partir.

Alguém certa vez disse, com muita propriedade, que é muito fácil jogar bombas, mas é difícil construir; é relativamente fácil derrotar um regime militarmente, mas é muito mais difícil criar uma sociedade civil sólida e sustentável em seu lugar. A Assembléia Geral da ONU poderia ter isso em mente quando começasse a codificar a doutrina da Responsabilidade para Proteger. (Project Syndicate)