Título: Abram os arquivos!
Autor: Dulce Pandolfi *
Fonte: Jornal do Brasil, 27/10/2005, Outras Opiniões, p. A11

No dia 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura de São Paulo, apareceu morto em um presídio da capital paulista. A versão oficial divulgada na imprensa, inclusive, através de fotos, era que o jornalista havia se suicidado na cela, dez horas após sua prisão. O assassinato, após tortura, de Herzog representou um marco na luta contra a ditadura vigente no país desde 1964: ampliou a caminhada pela conquista dos direitos humanos e gerou diversas manifestações exigindo explicações sobre esse e outros crimes cometidos pelos órgãos da repressão. Esses fatos estão sendo rememorados agora, com lançamentos de filmes e livros.

Três décadas após a tragédia de Herzog e 20 anos após a redemocratização do país, porém, organizações de direitos humanos, como o Grupo Tortura Nunca Mais, continuam lutando pela abertura dos arquivos da época da ditadura. Não se trata, aqui, de revanchismo, mas sim do direito de o País (e especialmente suas futuras gerações) ter seu passado conhecido.

Durante o processo constituinte de 1988, houve muito embate em torno dessa questão. Um das vitórias foi o estabelecimento do hábeas data, o direito de qualquer cidadão ter acesso às informações existentes sobre ele nos órgãos públicos, inclusive às informações produzidas pelos órgãos da repressão, mesmo as de caráter confidencial.

Entretanto, uma proposta apresentada por entidades de direitos humanos que previa o acesso a qualquer documento oficial num prazo de 30 anos após a sua produção, foi rejeitada. O Itamaraty, por exemplo, alegou a inconveniência de se liberar à consulta os documentos sobre a guerra do Paraguai, ocorrida em 1865, há mais de 140 anos!

A partir de 1992, diante de muita pressão, alguns arquivos das polícias políticas foram abertos. A consulta a esses arquivos trouxe novas informações sobre a ditadura, sobre as torturas e, sobretudo, sobre os desaparecidos políticos. A partir dessa documentação foi possível realizar trâmites legais, conseguir atestados de óbito, formalizar casos de viuvez, obter pistas sobre alguns dos assassinados.

E aqui é importante frisar que um dos maiores arquivos já organizados sobre o período foi constituído à revelia do Estado -- a partir de documentos obtidos por advogados de perseguidos políticos junto ao Superior Tribunal Militar, ainda na época da Anistia (1979). Para se entender como se deu a constituição desse arquivo, intitulado posteriormente Brasil Nunca Mais, é necessário lembrar que para julgar e condenar oficialmente seus prisioneiros, a ditadura necessitava documentar provas (apesar do estado de exceção vigente). Por isso, se numa primeira fase, as pessoas eram presas ''ilegalmente'' e submetidas às torturas, numa segunda fase, as que sobreviviam, tornavam-se prisioneiras ''legais''.

Ali, durante o ritual do depoimento, muitos, mesmo correndo risco de represália, denunciavam os maus tratos. Assim, as torturas que eram sistematicamente negadas pelo regime, ficaram documentadas e arquivadas em papel timbrado da própria Justiça Militar. Numa operação sigilosa e monumental, os advogados dos presos, juntamente com outros militantes dos direitos humanos, entre eles o arcebispo de São Paulo, Dom Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright, decidiram copiar aquela preciosa documentação.

Em 1995 foi criada a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos que, ao lado de outros setores da sociedade, continua lutando pela abertura de novos arquivos da repressão. Uma das maiores batalhas é conseguir a revogação do decreto 4.553, de 27 de fevereiro de 2002, que ampliou prazos para a abertura de arquivos considerados sigilosos, possibilitando, inclusive, que alguns documentos classificados como ultra-secretos, tenham sua consulta interditada por tempo indeterminado. Trinta anos depois do assassinato de Herzog, continua a luta em torno da abertura dos arquivos da repressão.

*Dulce Pandolfi é diretora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV).