Valor Econômico, v. 20, n. 4960, 14/03/2020. Finanças, p. C2

Coronavírus aumenta risco de crise de dívida corporativa
Andrew Edgecliffe-Johnson
Peggy Hollinger
Joe Rennison
Robert Smith


Desde 1925, o programa de rádio Grand Ole Opry tem apresentado incontáveis estrelas do country e do bluegrass nos Estados Unidos, de Bill Monroe a Dolly Parton. A Ryman Hospitality Properties, dona dos direitos, acabou erguendo um império hoteleiro e de entretenimento em torno ao programa original, em Nashville. A dívida da empresa, contudo, foi crescendo até superar os US$ 2,5 bilhões, ainda que o presidente de seu conselho de administração insistisse que o balanço patrimonial era “realmente forte”.

Isso durou até duas semanas atrás, quando as instalações da Ryman conseguiram se salvar de um tornado que atingiu Nashville, mas a empresa não ficou imune às turbulências que assolaram os mercados de títulos de dívida de empresas. Os investidores passaram a ser consumidos pelos temores com o coronavírus, de forma que começaram a surgir alertas sobre a possibilidade de quebras de empresas, diante do crescente peso de suas dívidas. Depois de clientes da Ryman terem cancelado 77 mil diárias de hotel, com um custo potencial de US$ 40 milhões, a Standard & Poor’s anunciou que colocaria a nota de crédito dos bônus da empresa em revisão para possível rebaixamento.

A reação da agência de classificação de risco mostra como a crise de saúde pública vem provocando reavaliação abrupta do risco de crédito das empresas e levantando dúvidas sobre emissores que há muito eram vistos como estáveis. Isso vem mudando a forma como os mercados avaliam vários setores, desde o de cruzeiros até o de varejo, e obrigando companhias do tamanho de Boeing e United Airlines a rever suas tomadas de crédito. Dessa forma, também representa um risco para as instituições financeiras que estão carregadas de dívida problemática.

“Tivemos várias experiências do tipo, mas esta é um pouco estranha”, disse o presidente do conselho de administração da Ryman, Colin Reed.

Muitas companhias têm se entupido de dívida barata há dez anos, o que levou o total mundial de títulos por vencer a US$ 13,5 trilhões, o maior patamar na história, segundo números do fim de 2019 divulgados pela OCDE. Em termos reais, é o dobro do que era em dezembro de 2008.

O custo de captação foi ao chão depois de bancos centrais pelo mundo terem reduzido as taxas básicas de juros para estimular suas economias na esteira da crise financeira de 2008. Os investidores, sedentos por melhores retornos diante do quadro de baixo rendimento dos bônus governamentais, passaram a emprestar mais para empresas de maior risco.

“Há um grande universo de empresas médias que, graças a um ciclo de crédito de 11, 12 anos, conseguiram captar e voltar a captar continuamente, de um banco a outro”, observa Mohsin Meghji, da M-III Partners, um veterano especialista em recuperação de empresas, que já trabalhou na reestruturação de dívidas de nomes como Sears e Sanchez Energy. “Essas empresas têm se arrastado graças ao fato de as taxas estarem muito baixas. Elas não se desalavancaram realmente. ”

Ruchir Sharma, estrategista-chefe mundial do Morgan Stanley Investment Management, estima que uma em cada seis empresas americanas não ganha fluxo de caixa suficiente para cobrir o pagamento de juros de suas dívidas. Esses “emissores zumbis” conseguiam ir adiando o aperto enquanto os mercados de dívidas lhes permitiam refinanciar-se. Agora, porém, a hora da verdade está chegando. As consequências ficaram mais à mostra nesta semana no setor de petróleo e gás, depois de a guerra de preços entre Riad e Moscou ter intensificado os temores do mercado com o coronavírus e jogado os bônus de petrolíferas americanas, no montante de quase US$ 110 bilhões, em território cujos rendimentos indicam situação de risco ou próximos da inadimplência.

Os riscos, entretanto, vão muito além da indústria de petróleo e gás. Como disse nesta semana a diretora-gerente nas Américas da Moody’s, Paloma San Valentin, agora há um “risco crescente para a qualidade de crédito das empresas pelo mundo”.

As agências de classificação de risco, cuja reputação ainda está machucada depois da lentidão em agir na crise passada, já vêm soando os alarmes quanto às empresas mais vulneráveis a cancelamentos de viagens, a interrupções na cadeia de fornecimento e a adiamentos nos gastos discricionários de consumidores. A Moody’s reduziu sua previsão de vendas para o setor automotivo e rebaixou para negativa a perspectiva para os setores de hotéis, empresas aéreas e cruzeiros. A operadora de salas de cinema National Amusements entrou na lista da S&P indicando possível rebaixamento na nota de suas dívidas, na qual também fazem parte as empresas de cruzeiros Carnival e a Royal Caribbean.

As oscilações do mercado também mudaram as contas em transações de fusões e aquisições e passaram a representar um verdadeiro teste para negócios alavancados como o da recente venda da unidade de elevadores da ThyssenKrupp a firmas de private equity por 17,2 bilhões de euros. Também levantaram novas dúvidas sobre empresas com passado turbulento, que vinham tentando reconquistar a confiança dos investidores. Os bônus da WeWork, a empresa deficitária de compartilhamento de espaços de escritório, caíram de 90% para 68% do valor de face.

Os casos de inadimplência corporativa anteriores à turbulência dos mercados com o coronavírus nas últimas semanas dão algumas dicas sobre que setores podem estar mais vulneráveis. Segundo a S&P, 8 dos 20 maiores casos de inadimplência neste ano vieram do setor de bens de consumo, incluindo a varejista americana Pier 1 Imports. O pedido de recuperação judicial da editora McClatchy ampliou o lamentável desempenho de donos de jornais locais, que dependem de anúncios.

A lista da S&P de “elos mais fracos”, formadas por bônus “junk” (de alto risco e retorno) com perspectivas negativas, tinha 282 empresas em dezembro, o maior número desde os tempos da crise, em julho de 2009.

Listas do tipo não capturam quantas empresas menores correm risco de ter problemas financeiros. Julie Palmer, sócia-gerente regional na Begbies Traynor, um grupo britânico de reestruturação, estimou que 490 mil empresas no Reino Unido já exibiam sinais de problemas antes do impacto do coronavírus. “Se o coronavírus afetar mesmo que [apenas] 5%, isso vai dobrar a insolvência empresarial”, disse.

Os grandes bancos costumam ter foco nos grandes clientes empresariais e deixam as empresas menores “bem lá atrás na fila”, disse Campbell Harvey, professor de finanças na escola de administração e negócios Fuqua, da Duke University. “Essas pequenas e médias firmas frequentemente são elos cruciais na cadeia produtiva. Se esses elos forem quebrados, seria muito mais difícil recuperar-se de uma recessão”, alertou.

Mais de US$ 320 bilhões em títulos americanos no limite inferior da faixa de notas consideradas investimentos seguros agora estão com rendimentos superiores a 5%, segundo dados da Ice Data Services. Antes, esse patamar era característico de empresas com risco muito maior.

A lista inclui nomes famosos como General Motors, Ford e as varejistas Nordstrom e Khol’s. Um nome na lista, a petrolífera Occidental Petroleum, anunciou na semana passada a redução de seus dividendos para proteger-se contra novos abalos. Especialistas em reestruturação de dívidas dizem que investidores à procura de vulnerabilidade deveriam prestar atenção às empresas que podem ser mais atingidas por quedas significativas na demanda e cuja capacidade produtiva fixa é grande e os custos, altos. Quase US$ 840 bilhões em bônus dos EUA com notas “BBB” ou menos devem vencer neste ano, sendo que papéis no montante de cerca de US$ 270 bilhões nos EUA agora são negociados a menos de 90% do valor de face. Muitas empresas já não conseguem refinanciar ou emitir novos títulos.

Muitas outras, no entanto, mesmo em setores bastante atingidos, como o de cruzeiros e de empresas aéreas, conseguiram refinanciar-se. Frequentemente, contudo, os bancos impõem novas exigências, como cláusulas de “mudança material adversa” (MAC, na sigla em inglês) ou pisos para as taxas, segundo Jennifer Daly, sócia na banca de advocacia King & Spalding. Outras estão em situação bem pior. A Intu, proprietária de shopping centers no Reino Unido, agora se depara com uma dolorosa reestruturação de dívidas, depois do abandono dos planos de emissão de ações com direito preferencial de subscrição de 1,5 bilhão de libras. Os preços no mercado de dívidas agora também revelam incertezas quanto ao vencimento de bônus de 725 milhões de euros da CMA CGM, mesmo depois de o grupo francês de transporte marítimo ter reiterado que tem caixa para pagar os títulos sem precisar lançar novos papéis.

Veteranos de crises passadas destacam que esta também vai trazer oportunidades, tanto para bancos bem capitalizados com foco de longo prazo quanto para empresas com balanços patrimoniais sólidos. “Se você está administrando um negócio e tem horizonte de cinco anos, [o coronavírus] não vai ser o único fator importante”, disse Ian Stewart, economista-chefe da Deloitte. Além disso, os governos poderiam intervir para evitar que a pressão sobre os balanços das empresas se torne uma crise maior de insolvência.