Valor Econômico, v. 20, n. 4960, 14/03/2020. Especial, p. A12

Argentina não tem plano de recuperação

Entrevista: Miguel Ángel Broda, Economista, Doutor pela Universidade de Chicago é fundador da consultoria Broda e Associados


A Argentina é um país anormal. Único no mundo que era rico e ficou pobre, com uma decadência secular e uma estagnação estrutural, que o transformou num pária no mundo. ” O diagnóstico é do economista Miguel Ángel Broda, de 77 anos, um dos mais respeitados do país. Doutor pela Universidade de Chicago é fundador da consultoria Broda e Associados.

Em entrevista exclusiva ao Valor, ele disse que o país está no fundo do poço e precisa sair do ciclo recessivo. Na opinião dele, o plano econômico do presidente Alberto Fernández visa este objetivo, mas é modesto e não contempla o equilíbrio das contas fiscais com vistas ao crescimento.

Broda diz que a reestruturação da dívida é chave para destrav economia. Prevê um desconto em torno de 40% no valor dos títulos a serem reestruturados para que a dívida seja sustentável, o que dificultaria as negociações e arrastaria o processo até julho ou agosto. Ele classifica a Argentina de “caloteiro serial”, mas acredita que haverá um acordo com os credores.

No entanto, ele reconhece que a emergência da pandemia da covid-19 pode complicar as negociações da dívida. Além disso, a perspectiva de uma recessão global em consequência das medidas drásticas que os governos em todo o mundo estão adotando para conter a epidemia vão manter a economia argentina em contração.

Sobre a recorrência de crises na Argentina, Broda diz que o país tem um problema estrutural, que é querer viver acima dos recursos que têm. Para sair dessa dinâmica, afirma, a Argentina precisa de um plano parecido ao Real no Brasil. O economista argentino é um admirador do país, onde viveu durante quase 10 anos - 1972 a 1981, como professor da Universidade de São Paulo (USP), substituindo o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto.

“Como um filho brasileiro porque o Brasil é minha segunda Pátria, desejo que o País vá muito bem! ”, afirmou com saudades. Broda elogiou Paulo Guedes e disse que teme um eventual enfraquecimento do ministro com a paralisação das reformas administrativa e tributária. Leia os principais trechos da entrevista:

Valor: Por que o mercado critica tanto o plano econômico do ministro da Economia, Martín Guzmán? Por que há tanta desconfiança e o que falta exatamente?

Miguel Ángel Broda: Eu creio que a Argentina tem três problemas importantíssimos. É o único país no mundo que era rico e ficou pobre.

Tem uma decadência secular. Há 100 anos, tínhamos o PIB per capita de um país desenvolvido e hoje temos um terço ou menos do PIB per capita médio dos países desenvolvidos. O segundo problema é que temos uma estagnação estrutural. O PIB do quarto trimestre de 2019 é igual ao do quarto trimestre de 2010. Isso implica em um PIB per capita 11% menor. E terceiro, estamos em recessão, no fundo do poço. Necessitamos sair do ciclo recessivo.

Valor: E qual é o problema do programa econômico?

Broda: O problema é que o programa do governo visa unicamente a sair da recessão, reativar a economia e redistribuir a renda. É modesto, emergencial para atender problemas conjunturais e com fortes raízes ideológicas. O denominei HEKA: heterodoxo estruturalista, keynesiano e com um papel muito ativo do Estado como elemento intervencionista regulador. Eu diria que é da tradição de Celso Furtado, da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), de Maria Conceição Tavares, da Universidade de Campinas, de tantos anos, tantas décadas... Está na antípoda de Paulo Guedes. Parte de um princípio básico da linha de [Joseph] Stiglitz de que na etapa recessiva do ciclo é pecado mortal fazer austeridade fiscal ou consolidação fiscal. Com a premissa de que não se pode continuar fazendo ajuste fiscal ao não ter financiamento, isso implica numa maior pressão tributária e na necessidade de conseguir espaço fiscal reestruturando a dívida. A primeira ideia fundamental do programa é que não se pode continuar reduzindo o déficit primário.

Valor: Quais são as consequências deste conceito?

Broda: A primeira é alta dos impostos e a interrupção do processo de redução da pressão tributária do programa fiscal de [Mauricio] Macri. A segunda é a absoluta necessidade de reestruturar a dívida para deixar mais espaço para gastar. A reestruturação da dívida é chave, mas no caso argentino a abordagem é contrária em relação as reestruturações comuns, que primeiro determinam qual o esforço fiscal necessário para reestruturar. Para a Argentina não é assim, porque [o governo Fernández] acha que não pode mais fazer ajuste fiscal. E, partindo disso, calcula o que sobra para pagar a dívida. Provavelmente o déficit primário deste ano vai subir em comparação ao ano passado.

Valor: O senhor quer dizer então que Guzmán vai propor um desconto muito maior no valor da dívida do que ele vinha sugerindo?

Broda: Provavelmente fará uma oferta com um desconto muito importante e não se pode descartar que [as partes] não cheguem a um acordo. Reestruturar a dívida é crucial para evitar instabilidade e volatilidade financeira que impediriam atingir o objetivo modesto de reativação cíclica. Ver como se resolve o problema da dívida é o primeiro obstáculo do programa econômico. Isso é um ponto de inflexão. Como não terá superávit primário, o Banco Central vai emitir dinheiro. E precisa ter um forte controle cambial para que o superávit comercial seja maior que a demanda por turismo, poupança e para pagar juros e dividendos. As reservas disponíveis são de US$ 8 bilhões a US$ 9 bilhões, do total bruto de US$ 44 bilhões. O plano [do governo Fernández] depende de que se mantenha um grande superávit comercial e da compra de US$ 8 bilhões a US$ 10 bilhões este ano para reforçar as reservas e pagar dívida. Vamos depender da prudência do BC para saber se a política monetária será moderada ou exageradamente expansiva e estas três condições iniciais do programa conjuntural nos levam a outra consequência muito importante: Argentina vai conviver com altas taxas de inflação.

Broda: Para isso provavelmente usaremos todos os instrumentos: postergar pagamentos, tanto de juros como de capital, incluindo descontos nos juros e no capital. A dívida em mãos dos credores privados é pequena, menos de 50% do PIB. Vamos reestruturar por nossa decisão de não dar continuidade ao ajuste fiscal. Devemos caminhar para descontos da ordem de 40%. Aí é muito importante o FMI [Fundo Monetário Internacional] e eu creio que o Fundo está disposto a fazer um novo acordo ‘stand by’ com a Argentina por nossa impossibilidade de fazer um plano Extended Facility [linha de crédito do FMI de prazo mais longo e custo mais baixo] porque não queremos fazer reformas trabalhista, da previdência e não queremos abrir a economia. Temos a ideia de desdolarizar a Argentina, mas a Argentina só vai poder se desdolarizar depois de 20 anos de estabilidade, nunca por um decreto.

Valor: O senhor vê um novo default da Argentina?

Broda: Eu não descarto um cenário no qual não se reestrutura a dívida. Creio que não é o cenário mais provável, mas é um cenário possível. Os títulos da dívida soberana têm cláusula de ação coletiva, se não tivessem, o default seria o caminho mais provável. Mas já temos títulos tão desvalorizados que é provável que alguns fundos especulativos estejam comprando alguns dos mais de 30 diferentes bônus que temos e possam produzir um bloqueio nas negociações.

Valor: Até quando o país tem fôlego para levar uma negociação?

Broda: Podemos negociar a reestruturação da dívida em dólares mantendo os pagamentos que estamos fazendo hoje até julho ou agosto, mas não mais que isso. Em termos de pesos, entre março e junho o governo tem que pagar vencimentos de 586 bilhões de pesos, que representam 32% da base monetária. Serão quatro meses quase sem respirar.

Valor: Segundo a sua análise, a Argentina está longe da estabilidade e do crescimento...

Broda: Bom, este não é um programa de estabilidade e crescimento como o Real do Brasil ou o programa [de estabilização econômica] de 1985 de Israel ou a Conversibilidade [câmbio fixo, 1992-2002] ou até mesmo parte inicial do Plano Austral da Argentina [1985]. Este é um programa de redução muito gradual da taxa de inflação. E aí aparece a visão estruturalista da inflação, onde para este pessoal, a inflação é produto da inércia inflacionária, indexação, ou dos gargalos ou do poder de oligopólio e monopólio da oferta de bens. Nessa abordagem a política monetária tem um papel super secundário. Sendo assim, vamos ter mais controles, vamos ter algo que temos feito e fracassado nos últimos anos porque isso é uma repetição do que já passou na Argentina, não só na Argentina.

Valor: Por que os ciclos de crise se repetem no país?

Broda: Na Argentina há esta ideia de que tropeçamos sempre com a mesma pedra, mas não. Tropeçamos sempre com a mesma montanha de pedras. Esta ideia de conviver com inflação alta nos levará a taxas de inflação da ordem de 40% ao ano, e isso com tarifas públicas congeladas de luz, gás e gasolina. Eu tenho a sensação de que esta convivência com a inflação nos transforma em um país absolutamente anormal. Em toda América Latina, a inflação é de 3%-4%, a taxa de juros é de 4%-5%, o risco país é de 150-200 [pontos-base]. Nós temos 50% de inflação, 40% de taxa de juros e risco país acima de 2.200 pontos-base, ou seja, somo anormal. Fazer um programa de estabilidade e crescimento sério implica em ter um conjunto de reformas que esta orientação heterodoxa [do atual governo] não permite fazer.

Valor: Mas por que não consegue sair da decadência?

Broda: A Argentina é recordista mundial de crises macroeconômicas, nos últimos 50 anos teve 15. A média na região deve ser de cerca de três. Por quê? Muito simples: tratamos de viver acima de nossos recursos. Gastamos mais do que arrecadamos. Nos financiamos emitindo dívida externa que em algum momento tem que se pagar, e muitas vezes adotamos controles de capital que geraram uma falta de dólares. Nossos problemas são muito mais de desequilíbrios fiscais. Na década de [Carlos] Menem e [Domingo] Cavallo [1989-1999], tivemos uma chance de sair dessa decadência. Com Macri também, mas a má gestão da política macroeconômica dele frustrou essas expectativas e colocaram as ideias pró-mercado em descrédito. Em outras palavras e com inveja: ter uma equipe como a de Paulo Guedes vai demorar muito, graças a Macri. E esperemos que o enfraquecimento que vemos do ministro brasileiro não se transforme em algo mais.

Valor: O que a Argentina precisa para sair dessa eterna crise?

Broda: Um plano parecido ao Real [do Brasil] que reconheça que somos um país bi-monetário. Agora não temos mais déficit em conta corrente e fizemos um esforço importante em reduzir o déficit primário. Claramente o país tinha condições muito favoráveis para fazer um programa de estabilização e crescimento com a nova Presidência. Em todos os lados estes bons programas não só permitiram baixar abruptamente a taxa de inflação a 2%, 3%, 4% ao ano, mas também produziram crescimento e foram muito exitosos para os políticos que o fizeram.

Valor: Planos baseados na responsabilidade fiscal e em reformas estruturais...

Broda: Obviamente. Não necessitamos as reformas estruturais do consenso de Washington, necessitamos o que países como Peru, Colômbia e Brasil fizeram. Nesses países pode haver problema político ou social, mas ninguém duvida de que vão manter a taxa de inflação e que o Banco Central tem objetivos que serão cumpridos. São países macroeconomicamente estáveis e, na verdade, o mundo é macroeconomicamente estável. Nós somos uma exceção. Encontrar países com esta volatilidade de inflação e de PIB, é dificílimo. Depois da Venezuela não encontramos algo parecido. A Grécia caiu um pouquinho mais que a Argentina, mas o que acontece conosco é inadmissível, intolerável.

Valor: O senhor disse que preocupa com um desgaste de Paulo Guedes. O que o senhor quer dizer?

Broda: Estamos muito preocupados com a paralisação da reforma administrativa e, sobretudo, tributária, e com o fato do Brasil ter, nos últimos tempos, um presidente que não vemos atuando ativamente para que as reformas de Guedes saiam. Um eventual enfraquecimento do ministro Guedes é uma má notícia para o crescimento do Brasil porque aumenta a incerteza. Claramente não bastou a reforma da previdência. Eliminar os riscos de um grande país sério com problemas estruturais de magnitude exige um contínuo processo de avanço nas coisas que estão mal.

O melhor cenário para o Brasil é que não tenha um desgaste de Paulo Guedes. Nesse caso, vejo que Uruguai, Paraguai e Brasil vão tratar de baixar as tarifas externas comuns [TEC] e fazer acordos de livre comércio com todo o mundo. A Argentina está em outro canal e aí temos um conflito. Os modelos heterodoxos sempre querem colocar travas à abertura. Vejo problemas para o Mercosul porque os outros três membros estão em uma direção e nós estamos em outra. Temos problemas de política externa importantes, com desentendimentos com [o presidente dos EUA Donald] Trump e com [o presidente brasileiro Jair] Bolsonaro.

Valor: Um avanço dos três sócios nesta direção isolaria a Argentina?

Broda: A Argentina hoje, eu digo isso com enorme dor, é um pária no mundo. O peso relativo da Argentina tem caído em função de seus fracassos econômicos. Não é uma boa notícia que outros queiram baixar tarifas e se integrar ao mundo e nós não.

Valor: Qual a sua previsão para a economia brasileira?

Broda: A contínua revisão da mediana da [pesquisa semanal do BC] Focus de crescimento do Brasil ainda é muito otimista em relação ao nosso prognóstico [Broda e Associados] que é de 1,8%. Acreditamos que o Brasil vai crescer menos que o consenso atual [1,99%, segundo a pesquisa Focus desta semana].

Valor: Em que medida a correção das perspectivas do Brasil afeta a Argentina e vice-versa?

Broda: Hoje o maior problema que temos é a desaceleração do PIB mundial produto da epidemia do novo coronavírus, que pode levar a uma recessão mundial. Eu não espero que a perda no primeiro trimestre seja absolutamente recuperada no segundo. O contexto internacional se deteriorou. Se isso for transitório, nos afetará menos, mas se for mais permanente vai afetar os dois países. Sem dúvida um menor crescimento do Brasil - que entre parênteses faz muitos anos que não cresce - é uma má notícia para a Argentina.

Há uma grande incerteza sobre a duração da pandemia e o custo em termos do PIB mundial. Se a economia mundial tiver uma queda adicional de 1% em relação ao que se esperava em dezembro e o Brasil tiver uma queda de 0,6%-0,8% - um cálculo muito provisório -, as perdas com a queda no fluxo de turistas, exportações, produção de petróleo e de automóveis e no consumo interno, a Argentina poderá ver uma queda adicional de 1% a 1,5% de seu PIB. Em lugar de ter uma queda de 1%, que estava prevista antes da crise, teria uma queda de entre 2% a 2,5% Tudo são complicações que esta crise global gerou à reestruturação da dívida. Valor: Em suas palestras no exterior, o que é mais difícil de explicar sobre a Argentina?

Broda: O que mais me custa explicar é porque estamos em decadência, tendo recursos naturais e humanos. Digo: veja, não creio que verei uma Argentina normal, não há o que se apaixonar pela Argentina, mas sempre há oportunidades na Argentina.