O Globo, n. 32563, 02/10/2022. Política, p. 10

Cisões nacionais

Dimitrius Dantas


Há 40 anos, o sociólogo Gláucio Soares escrevia: “Há profundas clivagens na sociedade e na política brasileira que nenhum sistema partidário pode solucionar”. Em outras palavras, dizia Soares que a perversa desigualdade social e econômica no país seria tão enraizada que os partidos, candidatos ou sistemas poderiam até mudar, mas seus efeitos insistiriam em reaparecer no comportamento político dos cidadãos.
Às vésperas do primeiro turno, uma análise feita pelo GLOBO em pesquisas eleitorais desde a redemocratização aponta que algumas dessas divisões permanecem. Outras, talvez adormecidas, vieram à tona. Ao que tudo indica, o Brasil que irá às urnas hoje repetirá a divisão entre pobres majoritariamente de um lado e ricos majoritariamente de outro, presente em quase toda a História democrática brasileira. Mas também é um Brasil que testemunhará um racha entre homens e mulheres, entre brancos, pardos e pretos e, principalmente, entre evangélicos e não evangélicos. Especialistas ouvidos pelo GLOBO reforçam que, desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018, essas variáveis de identidade parecem ter entrado na conta.

Neste ano, de acordo com pesquisa Datafolha divulgada ontem, o ex-presidente Lula tem uma larga vantagem entre os mais pobres, de 31 pontos percentuais, sobre Bolsonaro. Por outro lado, a distância de Bolsonaro para o petista entre aqueles com renda familiar mensal de mais de cinco salários mínimos é de 16 pontos percentuais. Vantagem que se reflete em outros estratos sociais, como escolaridade e região.

Mas, além dessa divisão, a vantagem de Lula para Bolsonaro entre as mulheres é de 15 pontos e, entre homens, cai para onze. Do ponto de vista religioso, a formação de duas grandes bolhas é ainda mais clara: o candidato do PT lidera entre os católicos, com 54% das intenções de voto. Entre os evangélicos, a situação se inverte: Bolsonaro é quem tem 52% da preferência.

Esforços eleitorais

Essas duas forças motivaram boa parte da campanha dos dois principais candidatos. Meses antes da eleição, Jair Bolsonaro despejou bilhões na economia para tentar diminuir a vantagem de Lula. Sempre à frente nas pesquisas eleitorais, o petista, por sua vez, tentou aliviar sua imagem para os eleitores evangélicos.

Durante os meses de campanha, Bolsonaro tentou mudar sua imagem. Nos programas eleitorais, o aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 foi posto em prática. Apesar disso, o presidente cometeu deslizes que podem ter lhe custado um crescimento no segmento. Em agosto, Bolsonaro chegou a dizer que não se vê no dia a dia pessoas pedindo pão nas padarias.

— Essa senadora (Simone Tebet) aí falou besteira. Gente passa mal? Sim, passa mal no Brasil. Alguém já viu alguém pedindo um pão na caixa da padaria? Você não vê, pô. Até no interior. Tem gente que passa mal? Tem gente que passa mal, sim. Mas quem porventura está na linha da pobreza, passando fome. Deve ter gente que passa fome, e só — afirmou o presidente durante a entrevista.

Posteriormente, a um podcast, Bolsonaro voltou a repetir que não existe “fome para valer” no Brasil.

— Fome no Brasil? Fome pra valer? Não existe da forma como é falado. O que é a extrema pobreza? É você ganhar até US$ 1,90 por dia. Isso dá R$ 10. O Auxílio Brasil são R$ 20 por dia. Então, quem porventura está no mapa da fome, pode se cadastrar e vai receber. Não tem fila. São 20 milhões de famílias que ganham isso aí —afirmou o presidente.

Lula, por outro lado, teve que lidar com diversas questões relacionadas à religião. O petista apareceu atrás de Bolsonaro entre evangélicos durante toda a campanha. Em meio a isso, também foi alvo de fake news, como a de que fecharia igrejas caso fosse eleito. No Rio de Janeiro, já no fim da campanha, afirmou que pastores que seguem Bolsonaro não acreditam em Deus. Em agosto, Lula havia dito não ser candidato de uma “facção religiosa”, o que rendeu críticas entre evangélicos.

— Pastor que segue ele (Bolsonaro) não pode ser pastor, não acredita em Deus, não pode falar em nome de Deus — disse, após criticar o posicionamento de Bolsonaro durante a pandemia.

Polarização agravada

A divisão aprofundada entre eleitores também por questões de identidade não ficou apenas nos discursos dos candidatos. Chegou também às ruas, em alguns episódios de violência: em Foz do Iguaçu (PR), um petista morreu após reagir a um ataque a tiros de um guarda civil bolsonarista. Em Mato Grosso, um apoiador do presidente foi preso acusado de matar um homem que defendia o ex-presidente Lula.

Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo (USP), tem estudado o crescimento da polarização nos últimos anos.

— O grande problema é que as identidades políticas estão fortes, ou seja, ser progressista, ser conservador, ser feminista. Está ficando muito forte e, junto com isso, vem uma hostilidade por quem tem uma identidade contrária. Se eu me afirmar como bolsonarista, eu desgosto do lulista. Não apenas do Lula, mas do lulista. Esse é o fenômeno mais preocupante, pois gera medo e esse medo deságua na violência política — afirma.

A avaliação é compartilhada pelo cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco Joanildo Burity. Segundo ele, essas divisões mais tradicionais, como a que separava o eleitor entre trabalhador ou não, vêm gradualmente perdendo força.

 

— Há uma perda de visibilidade para essas clivagens tradicionais. Hoje, há uma diversificação crescente de como as pessoas se identificam, seja com a intensificação das novas mídias, mas também com o surgimento de movimentos identitários mais ativos, como o de mulheres e negros. Isso potencializou as questões do racismo, do machismo e tudo o mais na sociedade — explica Joanildo.

Mudanças no PT

Pesquisas recentes têm observado esse fenômeno sobretudo entre os eleitores do PT. Na sua formação, o eleitorado do partido era majoritariamente católico, ligado ao sindicalismo e a movimentos de esquerda. Na década de 1990, passa a ser fortemente concentrado entre homens, moradores de grandes cidades e com alto nível de escolaridade. Em 1994, por exemplo, o Datafolha apontava um empate técnico entre Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula entre aqueles com ensino superior, ao passo que o pior resultado do petista era entre analfabetos. Até 2002, o melhor resultado de Lula era entre os mais escolarizados.

A partir de 2006, com os programas sociais adotados pelo partido no governo, a situação se inverte e persiste até hoje, com o PT tendo sua principal força política entre os mais vulneráveis do ponto de vista de renda. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina, o cientista político Julain Borba também tem investigado as chamadas clivagens na sociedade brasileira. Em estudo recente, Borba identificou que a preferência partidária no Brasil responde, principalmente, a questões morais. Entretanto, o eleitorado do PT vem se tornando cada vez mais parecido com o restante da população do ponto de vista moral.

— Temos observado que a divisão de hoje em relação a preferência partidária, não necessariamente de voto, é em torno de questões morais. Aqueles mais à direita são mais fundamentalistas e mais conservadores em termos morais. No início dos anos 1990, os petistas eram muito mais liberais do que os não petistas. Os dados apontam, entretanto, que, em 2006, 2014 e 2018, já não era tanto.

Ortellado acrescenta que as campanhas buscam sintonia com divisões sociais que existem independentemente da disputa eleitoral:

— A polarização é um fenômeno social, não eleitoral apenas. As forças políticas capturam e usam essa polarização. É a polarização afetiva, de quem escolhe uma certa identidade, mas, principalmente, tem ojeriza por quem tem uma identidade adversária. E tem gente que não está polarizada e está votando em um dos dois.