O Globo, n. 32620, 28/11/2022. Saúde, p. 12

Desassistidos

Paula Ferreira
Alice Cravo


Carro-chefe do Sistema Único de Saúde (SUS), a atenção básica é uma preocupação do grupo de transição na área. A equipe do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem recebido levantamentos técnicos que indicam que dezenas de milhares de pessoas estão desassistidas, em um desafio para o governo que começará em janeiro.

Um dos relatórios externos, feito pelo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), mostra que cerca de um terço da população do país, o que representa 72,69 milhões de pessoas, ainda não está coberta pelo programa Estratégia de Saúde da Família (ESF). O documento, que o GLOBO teve acesso, mostra também que 33,3 milhões de famílias não têm acesso a nenhum tipo de atendimento na área da saúde, seja por planos de saúde ou acesso ao SUS, e se encontram em um completo “vazio sanitário”.

O ESF é um dos maiores programas do mundo em atenção básica e prevê atendimento por médicos generalistas ou especialistas em saúde da família, além da atuação de agentes comunitários do setor, que visitam as casas de brasileiros para realizar o acompanhamento de pacientes e da população em geral. O modelo é considerado uma das maiores ferramentas na prevenção de doenças como hipertensão e diabetes.

A equipe de Lula aposta em uma remodelação do programa Mais Médicos para ampliar o acesso à atenção básica e preencher a falta de médicos no interior do país. Dados apresentados pela equipe de transição mostram um corte de mais da metade do recurso destinado à formação de profissionais para atenção básica no Projeto de Lei Orçamentária 2023 (PLOA 2023), uma queda de R$ 1,5 bilhão em comparação com o orçamento de 2022.

Prioridade

Para reforçar a atuação dos médicos da família, o governo eleito pretende investir em telemedicina para que profissionais de saúde do interior consigam se comunicar com especialistas que ficam em grandes centros para obter orientação. O investimento na área é considerado “prioridade total” da próxima gestão e há o objetivo de promover uma recomposição das equipes do Saúde da Família e programas que garantam a fixação de profissionais na área.

— É preciso fazer um plano progressivo para alcançar a população brasileira integralmente, porque a atenção básica não cuida só de aspectos clínicos, ela cuida também de aspectos de saúde coletiva, do território. Os agentes de saúde fazem visitas aos territórios para identificar, por exemplo, onde tem possíveis criadouros de mosquitos mesmo em condomínios de luxo. Então, é preciso que o Brasil inteiro seja coberto pela atenção básica — explica Adriano Massuda, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e colaborador do grupo de transição.

Uma das principais discussões no radar da equipe de transição é a retomada do financiamento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), que reúnem equipes com profissionais variados para atuar em áreas como saúde da criança; saúde da mulher; saúde mental; entre outras. Os núcleos servem de apoio para as equipes de saúde da família, auxiliando a traçar estratégias e fornecer treinamento.

Vazio Sanitário

De acordo com dados do Ministério da Saúde, até o final do ano passado o Brasil tinha 47.278 equipes. O Ieps estima que 100% de cobertura da ESF pode ser alcançada com cerca de 25,6 mil novas equipes, o que requer até 236,9 mil profissionais de saúde, entre médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares e agentes comunitários de saúde. Segundo o relatório, com base em cálculos feitos levando em consideração o orçamento do Ministério da Saúde proposto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) 2023, faltariam R$ 17,1 bilhões de investimento ao ano para cobrir essas necessidades estruturais. Mas, para começar, R$8,9 bilhões em recursos humanos e R$ 6,1 bilhões para custear a construção de novas unidades de saúde dariam conta de incluir a população que se encontra em vazio sanitário.

— A gente não espera que o governo nos primeiros 100 dias invista isso para chegar em 100% da cobertura. Essas coisas precisam ser sequenciadas. O primeiro passo, é focar nesses 33 milhões que estão no vazio sanitário. E, mesmo esse grupo, precisa sequenciar. Aí as coisas começam a caber no orçamento. É uma estratégia de longo prazo — destaca Arthur Aguillar, diretor de Políticas Públicas do instituto.

Uma das soluções para ampliar a receita e custear essa expansão seria, por exemplo, aumentar a taxação de produtos que podem resultar em custos de tratamento de saúde no SUS, como álcool, tabaco e alimentos ultraprocessados, elevando a contribuição dos estados neste processo.

A maior parte da população desassistida pela ESF está nas capitais. Segundo o Ieps, 21,5 milhões de pessoas que não têm plano de saúde nem estão cobertas pelo SUS vivem em capitais ou regiões metropolitanas. A baixa assistência da saúde básica ocorre porque estes locais costumam ser referência de investimentos em equipamentos de média e alta complexidade, escanteando a medicina familiar.