O Globo, n. 32619, 27/11/2022. Economia, p. 17

Alternativa à CLT

Geralda Docca
Raphaela Ribas


A equipe do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quer que os prestadores de serviço por meio de aplicativos (motoristas, motoboys e entregadores de plataformas como Uber, 99, Rappi e iFood) tenham direitos correspondentes aos dos assalariados cobertos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

O plano é ir além dos benefícios previdenciários — como aposentadoria, pensão, auxílio-doença e acidente —, conforme chegou a cogitar o atual governo. Pelos planos que começam a ser formulados, esses trabalhadores teriam direito a seguro, jornada diária máxima e negociação coletiva com as empresas.

Segundo estimativas do Ministério do Trabalho e Previdência, há ao menos 3,05 milhões de trabalhadores que prestam serviços para plataformas no Brasil. E está no radar da equipe de Lula a criação de um cadastro único para a categoria, a fim de identificar esses trabalhadores e adequar as políticas a serem criadas.

Segundo o economista Clemente Ganz Lúcio, coordenador do grupo temático de trabalho na transição, a estratégia é fugir da discussão sobre existência ou não de vínculo empregatício — polêmica em todo o mundo — e focar no conceito de relação de trabalho. Um dos caminhos, diz, é seguir o exemplo da Espanha, que criou direitos, mas é criticado por alguns especialistas:

— Se um trabalhador presta serviço a um só empregador, o entendimento é que essa relação de trabalho se enquadra nas regras da CLT. Se o trabalhador presta serviço para várias plataformas, a ideia é criar um regime capaz de promover e garantir direitos e deveres de todas as partes, trabalhadores, plataformas, entes públicos como a prefeitura e os próprios consumidores.

Ganz Lúcio disse que ainda não há uma proposta formatada, mas a ideia é que todos deverão contribuir para que esses trabalhadores tenham direitos trabalhistas assegurados, porém em uma modelagem diferente da CLT.

A proposta da equipe de Lula difere do projeto desenhado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), que afirmava expressamente que não haveria vínculo empregatício entre trabalhadores e plataforma, principal demanda dos aplicativos. Os trabalhadores pagariam contribuição semelhante à dos microempreendedores individuais (MEIs) e teriam os mesmos direitos que estes.

A proposta previa o desconto obrigatório de uma contribuição pelos trabalhadores, que as plataformas recolheriam e repassariam ao governo. O plano da futura gestão Lula é levar o assunto a uma comissão tripartite, com representantes de governo, empresas e trabalhadores.

A advogada Anna Carolina Cabral, sócia do Queiroz Cavalcanti Advocacia, alerta que a formalização desses trabalhadores não pode prejudicar a própria categoria:

— É preciso cautela antes de se impor o engessamento da total liberdade, sob pena de um esvaziamento destes profissionais, assim como ocorreu na Espanha em 2021.

Debate no mundo

O país europeu, um dos modelos citados pela equipe de transição, impôs às empresas de aplicativos a contratação, como empregados, dos trabalhadores até então autônomos, com reconhecimento de vínculo empregatício, além de compartilhamento com eles dos dados captados pelos algoritmos para gerenciar a rotina de trabalho e direito a férias e descanso remunerados.

Já o Reino Unido, explica Anna Carolina, adotou o sistema em que o trabalhador tem a prerrogativa de ter seu tempo de jornada contabilizado a partir do momento em que liga o aplicativo e fica disponível, não somente quando cumpre determinada viagem ou entrega. As regras foram impostas por decisão judicial.

Na Califórnia, nos EUA, uma lei obriga a contratação de trabalhadores de aplicativo, com natureza empregatícia, desde 2019. Itália e França têm seguido a mesma linha para reconhecimento e garantia de normas trabalhistas, mas ainda não têm regulamento específico.

Não há, até agora, convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre trabalho por meio de plataformas digitais. O tema deve ser tratado no órgão em março.

— O trabalho de aplicativo está numa zona cinzenta. Plataformas classificam trabalhadores como autônomos, mas eles não têm independência. Há evidências de más condições de trabalho, sem proteção social — diz a economista Janine Berg, do Departamento de Pesquisa da OIT, em Genebra.

Entregadores e motoristas de aplicativos ouvidos pelo GLOBO temem que uma regulamentação altere a forma como atuam, reduzindo flexibilidade e ganhos. Há muita desinformação e boatos. Para Matheus Santos, de 23 anos, que faz entregas por iFood e Rappi no Rio, as novas regras devem preservar a essência do modelo:

— Isso (regulamentação) não pode acabar com a premissa do aplicativo, que é você ser seu próprio chefe e fazer o seu horário. Temo que isso acabe atrapalhando a maioria dos entregadores.

Já Rodrigo Lopes, de 30 anos, avalia que, dependendo do que for proposto pelo novo governo, pode ser bom:

— Depende de como seria costurado. Acho que se houvesse diálogo conosco seria mais válido, para saber o que a gente passa. Algumas regras (trabalhistas) não fazem sentido no nosso dia a dia.

O motorista Anderson Silva, de 40 anos, que atua há quatro no Uber, conta que ele e vários colegas usam o registro de MEI como forma de garantir seguro-saúde e contribuição para a aposentadoria. Para ele, a prioridade seria reduzir custos:

— Muitos motoristas não querem ter as obrigações da CLT. Seria bom se o governo, em vez da regulamentação, conseguisse reduzir a taxação (de carros).

O que dizem as empresas

O iFood informa em nota que apoia o diálogo: “Reconhecemos a importância da construção de um ambiente regulatório que amplie a proteção social de entregadores e motoristas de aplicativos, cujas dinâmicas de trabalho não se enquadram nas alternativas existentes. Como premissa, este novo modelo também deve ser capaz de preservar as características de autonomia e flexibilidade valorizadas pela categoria, além de garantir segurança jurídica ao setor.”

Rappi e Uber não responderam. A 99 informou que se pronuncia por meio da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Abomitec). Segundo o diretor executivo da entidade, André Porto, o setor defende a regularização desde que preserve uma relação de trabalho distinta da CLT:

— Uma coisa é a CLT, o vinculo de emprego, outra é a inclusão previdenciária. A principal preocupação deles (trabalhadores) é um acidente, doença. E isso seria coberto pela inclusão previdenciária.