O Globo, n. 32617, 25/11/2022. Brasil, p. 12

'Luto em luta'

Eduardo Graça


No último dia 8, a morte de Marina Harkot completou dois anos. A socióloga e mestre em arquitetura de 28 anos fazia doutorado sobre mobilidade urbana quando foi atropelada, de bicicleta, na Zona Oeste de São Paulo. O motorista foi acusado de estar embriagado e de não prestar socorro. Após recurso da defesa contra decisão de julgamento com júri popular por indícios de intenção de morte, o caso segue em análise enquanto o réu aguarda em liberdade.

Em Brasília, há seis meses, o Superior Tribunal de Justiça anulou, por razões técnicas, a condenação a dois anos de detenção, por homicídio culposo, do motorista que atropelou, em alta velocidade, de acordo com laudo, o ciclista Raul Aragão, 23, em outubro de 2017, na via L2 Norte. Como o réu tinha 18 anos, o caso prescreveu. O jovem se preparava para fazer mestrado na Holanda sobre mobilidade sustentável.

Marina e Raul agora inspiram familiares, colegas e especialistas a cobrar do Judiciário rigor punitivo e do governo eleito a implantação de políticas públicas focadas nas pessoas e não nos carros.

Em 2020, de acordo com o DataSUS, os sinistros de trânsito tiraram 32.716 vidas, ou mais de 15 cidadãos por 100 mil habitantes, quase quatro pessoas por hora. Pedestres e ciclistas são 20% das vítimas. Embora tenha reduzido quase 30% na última década, o número está distante da meta estipulada pela ONU de queda pela metade no período. Não há estatísticas sobre processos judiciais — em geral complexos e morosos, criticam estudiosos do tema — ou punições.

— Além da fundamental redução da velocidade nas vias, precisamos modificar a percepção jurídica sobre a intencionalidade das mortes. Nos recusamos, por exemplo, a usar ‘acidente de trânsito’. O correto é sinistro — afirma Glaucia Pereira, criadora do Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana.

Dados e Auxílio

O Multiplicidade é parceiro da ONG Pedale Como Marina no Observatório da Impunidade no Trânsito Brasileiro, que reunirá, de forma pioneira, dados sobre atropelamentos e mortes de ciclistas. E prestará auxílio legal e psicológico, com uma rede de voluntários, a famílias de vítimas.

— Cada processo será analisado para entender como lidar com os gargalos, entre eles a falta de recursos para se pagar advogados e peritos. Inicialmente, focaremos nas vítimas ciclistas — conta a especialista.

O oceanógrafo Paulo Harkot jamais esqueceu a dor de receber o telefonema que o informou da morte da filha. E as sensações de impotência, revolta, mas, também, a descoberta da dimensão do trabalho de Marina, pesquisadora e ativista respeitada e muito querida por seus pares.

—Transformamos o luto em luta — resume.

O Observatório quer implantar o Memorial Marina, que substituirá as anônimas bicicletas brancas em locais onde morreram ciclistas no país por totens com fotografias e biografias alentadas das vítimas.

— Quando alguém é assassinado no trânsito, todo o ecossistema sofre pelo desperdício de vidas que tinham muito a oferecer à sociedade — diz Harkot.

Em Brasília, cinco anos após a morte de Raul, sua mãe, a auditora aposentada da Receita Federal Renata Aragão, coordena a ONG Rodas da Paz, que busca a aprovação de políticas públicas votadas para a mobilidade sustentável.

— No meu caso, não haverá punição alguma, já perdi a esperança. Hoje foco no coletivo, na necessidade de educar e lutar pela mudança nas leis para ajudar outras famílias — diz.

A mãe de Raul, o jovem que gostava de dizer que “pedalar é suave”, frisa que o novo governo tem agora a oportunidade de impor a lógica de que as cidades são para as pessoas:

— A impunidade retroalimenta os crimes de trânsito. Quem mata não é preso, quando muito paga-se fiança, assina-se acordo, faz-se trabalho comunitário. Não há consequências, não é educativo pro sujeito e muito menos pra sociedade.

Este ano, duas raras condenações de motoristas por homicídio doloso, ambas em Pernambuco, foram acompanhadas com atenção pelos ativistas. Em março, um homem recebeu a pena de 29 anos e quatro meses de prisão pelas mortes de Maria Emília Silveira, de seu filho Miguel, e de Roseane Souza, que estava grávida, em 2017, em Tamarineira, na Zona Norte do Recife. Onze dias depois, em Caruaru, outro réu foi sentenciado a 20 anos, sete meses e vinte dias de reclusão em regime fechado pela morte, em março de 2018, de Rogério e Adelma da Silva. A expectativa é que estas decisões possam ser usadas como exemplos em futuras punições de motoristas que bebem, correm e matam.

Carta Compromisso

Ontem, 30 organizações da sociedade civil entregaram à equipe de transição a Carta Compromisso com a Mobilidade Sustentável. A União de Ciclistas do Brasil (UCB), a Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo (Cidadeapé) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), entre outras, defendem a revisão do Código de Trânsito Brasileiro, o aumento de penalidades para motoristas que atentem contra a vida, e a readequação da velocidade máxima em vias urbanas. Participaram da cerimônia o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), e a presidente do PT, Gleise Hoffman. A deputada, que é usuária de bicicleta, sugeriu que a pauta seja encaminhada para a equipe de Cidades.

Mas implantar mudanças não será simples. Pesquisa feita em abril pelo Mobilidade Urbana para a UCB em dez capitais (Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Campo Grande, Brasília, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre) com 401 pessoas, revelou, entre outros dados, que nove em cada dez consideram o nível de mortes alto, mas apenas 19% concordam com velocidades mais baixas, um sinal amarelo para a capacidade de convencimento dos políticos da aplicação das mudanças propostas.

Um exemplo de efetividade, aponta Ana Luiza Carboni, representante da UCB na Câmara Temática que monitora a implementação do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito, foi a redução, em 2015, da velocidade permitida nas marginais Pinheiros e Tietê, em São Paulo. No ano seguinte, houve queda de 52% de mortes. À época, o comando da cidade era de Fernando Haddad (PT), nome forte do novo governo, que perdeu no primeiro turno a reeleição em 2016.

A UCB também formatou proposta de projeto de lei que será apresentada, com parecer jurídico favorável, a senadores e deputados no início da nova legislatura. Ela determina a redução de limite de 80km/h para 60km/h e de 60km/h para 50 km/h em vias que hoje permitam essas velocidades. As entidades pedem ainda que o novo governo, após o que qualificam como “retrocesso” da gestão Jair Bolsonaro (PL), simbolizado pelo afrouxamento das multas de trânsito (com a pontuação para perda de carteira reduzida pela metade), “retome a fiscalização e o monitoramento de rodovias federais” e revise o conteúdo ensinado nas autoescolas, incluindo a “humanização do trânsito”.