O Globo, n. 32616, 24/11/2022. Brasil, p. 11

Congresso aprova lei contra “arquitetura hostil'' a sem-teto

Arthur Leal


A Câmara dos Deputados aprovou, nesta terça-feira (22), a Lei Padre Júlio Lancelotti, que proíbe a instalação da chamada arquitetura hostil nas cidades brasileiras, usada por governos e prefeituras para afastar e impedir a permanência de pessoas em situação de rua em determinadas áreas públicas. O método mais frequentemente utilizado nas principais metrópoles do país é o das pedras pontudas que, pensadas justamente para ferir quem se arriscar a passar sobre elas, são colocadas principalmente debaixo de viadutos e à beira de estradas, inviabilizando a ocupação dos locais por uma população que não tem onde morar.

Os votos foram declarados pelas lideranças de cada partido na Câmara. Das 27 legendas, apenas o partido Novo foi contrário ao PL nº 488/2021, de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede/ES). A lei irá agora à sanção do presidente Jair Bolsonaro (PL) e, só então, deve ser regulamentada.

A lei, que também já havia sido aprovada por maioria no Senado, homenageia o padre Júlio Lancelotti, da Paróquia de São Miguel Arcanjo, assíduo defensor da população em situação de rua, que nas redes sociais definiu a vitória no parlamento como uma "alegria" . No ano passado, o sacerdote ficou conhecido nas redes sociais ao ser gravado quebrando, com uma marreta, vários paralelepípedos e pedras pontiagudas instalados pela prefeitura de São Paulo embaixo de viadutos da Zona Leste. Na ocasião, ele disse que a obrava provocava um aspecto de "campo de concentração".

Após as imagens do padre terem viralizado, a prefeitura de São Paulo emitiu uma nota, afirmando que a implantação de pedras sob viadutos foi uma decisão isolada, "que não faz parte da política de zeladoria da gestão municipal", e que havia determinado imediatamente a remoção. Um funcionário, responsabilizado pela ordem de aplicação dos blocos chegou a ser exonerado.

A proposta altera o Estatuto da Cidade e prevê a "promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado", e veda o "emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de arquitetura hostil que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população.” A regra não contempla áreas privadas.

O relator do PL foi o deputado federal Joseildo Ramos (PT-BA), que votou a favor da aprovação.

"A pobreza, a marginalização e a exclusão social devem ser combatidas pelo Poder Público e não escondidas. Fere o princípio da dignidade da pessoa humana a adoção de técnicas, estruturas e materiais hostis nas cidades. Ademais, a medida é contrária ao objetivo constitucionalmente estabelecido da política urbana, que é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, entre os quais estão incluídos os moradores de rua", argumentou o parlamentar.

"A cidade, como principal locus de desenvolvimento humano, deveria privilegiar a convivência, a construção das relações sociais, a idealização de soluções efetivas para os problemas sociais existentes, a solidariedade e a compaixão. A adoção de técnicas hostis, além de ser juridicamente inaceitável, é materialmente degradante, ao estimular o medo, o egoísmo, a marginalização e a violência. Por todos esses motivos, entendo como meritória e oportuna a sua proibição no Brasil", concluiu o petista.

No texto, o relator propôs ainda uma emenda para modificar o termo "arquitetura hostil" por "técnicas construtivas hostis".

"Entendo que a criação de qualquer ambiente que evite ou dificulte a sua fruição pelo ser humano não pode ser classificado como arquitetura. A palavra arquitetura deve preservar o seu sentido de arte e técnica de criação de ambientes para proporcionar bem-estar e qualidade de vida ao ser humano. A essência da arquitetura é o acolhimento, de modo que tudo que vai de encontro a esse preceito não pode ser considerado arquitetura".