Valor Econômico, n. 4958, 12/03/2020. Brasil, p. A6

Agravamento da crise reforça debate sobre uso de medidas fiscais

Arícia Martins


Diante da ameaça crescente de efeitos mais severos do coronavírus sobre o nível de atividade no Brasil, ganha espaço entre economistas a avaliação de que a política monetária, agora, já é insuficiente para fazer frente ao choque negativo. A visão não é consenso, mas alguns especialistas argumentam que, numa situação de urgência, o governo precisa injetar dinheiro na economia, mesmo sob forte restrição fiscal.

“No curto prazo, a parte fiscal é mais importante do que a monetária”, afirma Simão Silber, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Num choque de oferta, com menor circulação de pessoas, a produção é interrompida e estímulos monetários não vão impulsionar a atividade, avalia Silber.

Nesse cenário atípico, o governo poderia acelerar um montante considerável de gastos, sugere. Como exemplos, além das despesas emergenciais necessárias na saúde, ele enumera concessão de aposentadorias para todos os benefícios pendentes de análise no INSS, inclusão no Bolsa Família dos possíveis beneficiários que estão na fila, aumento de recursos para o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, liberação de novos saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e concessão de seguro-desemprego por um prazo maior.

“É preciso dar um colchão mínimo de renda para as pessoas, além de evitar pânico”, avalia Silber, para quem, num quadro de emergência como o que se avizinha, o cumprimento do teto de gastos fica em segundo plano. “Não pode suspender o teto, mas pode furar, porque nunca tivemos uma pandemia nos tempos modernos. Esta não é uma condição de normalidade”, ressalta.

Crítico de longa data do teto e favorável a uma flexibilização da regra, Bráulio Borges, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), avalia que fazer essa mudança “no olho do furacão” seria imprudente. Num momento de forte aversão ao risco, mexer em regras fiscais poderia elevar a incerteza e reduzir ainda mais a confiança dos agentes econômicos, diz Borges, também economista-sênior da LCA Consultores. “Não saberíamos se a mudança seria para uma regra fiscal pior ou melhor. ”

Para o pesquisador, se o teto fosse alterado para um bom modelo, como o proposto pelos economistas Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco, e, ao mesmo tempo, medidas de contenção de gastos como a PEC emergencial e a reforma administrativa fossem aprovadas, o risco de efeito negativo na confiança poderia ser mitigado. “Mas não é nada garantido que o governo consiga fazer essas mudanças. ”

Assim, o arsenal de medidas imediatas para conter a derrocada da atividade seria limitado, segundo Borges: reduzir mais a Selic e autorizar mais saques temporários do FGTS - liberação que não afeta o gasto primário, mas não deixa de ser uma política de estímulo fiscal, afirma. Na conjuntura atual, o debate sobre elevar os gastos do governo faz sentido porque, diferentemente de cortes de juros, seu efeito sobre a economia não depende da decisão de empresas e consumidores, observa ele.

Num ambiente de incerteza elevada, em que a demanda do setor privado fica reprimida, cortar os juros pouco ajudaria a alavancar empréstimos, defende Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre. Por isso, Castelar é contrário a reduções adicionais da Selic e a uma atuação mais forte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Não temos problema de falta de crédito. O BNDES tem quase R$ 100 bilhões em caixa, mas as empresas não querem investir. ”

Da mesma forma, não seria eficaz baratear ainda mais o custo do crédito se as pessoas não vão sair de casa para consumir, acrescenta o coordenador. Em sua opinião, liberações de saques do FGTS poderiam ser feitas de forma mais seletiva, em regiões menos afetadas pela doença.

Para Castelar, o crucial no momento seria uma sinalização mais forte do governo de que a agenda de reformas, com destaque para a tributária e a administrativa, será priorizada. “Nem o cidadão comum nem o empresário sabem para onde o governo quer levar o país”, o que inibe decisões de investir, aponta o economista. “Ninguém sabe a prioridade do governo. Neste ambiente, o investimento, que é o que está segurando o crescimento, não vai voltar. ”

Já José Luís Oreiro, professor da Universidade de Brasília (UnB), é defensor de estímulos monetários e fiscais para fazer frente ao agravamento do choque, reação que, segundo ele, seria convencional. Como considera a situação extrema, Oreiro avalia que a regra do teto deveria ser suspensa por dois anos, alteração que só pode ser feita via emenda constitucional. Supondo que a mudança seja rápida, o impacto positivo de mais investimentos públicos sobre o PIB também viria logo, argumenta o professor.

“Dado o baixo crescimento em que a economia já vinha, e a ameaça de recessão mundial, não é hora para amarrar as mãos”, diz Oreiro. Como reduções da Selic levam de seis a nove meses para surtir efeito sobre a atividade, suspender o teto seria justificável, avalia. “É um momento de muita incerteza, que exige flexibilizar regras fiscais. ”

Oreiro sugere, ainda, a suspensão das devoluções do BNDES ao Tesouro e assistência da União a Estados que, com queda dos royalties do petróleo, fiquem sem condições de arcar com a folha pagamento de seus funcionários.