O Globo, n. 32607, 15/11/2022. Opinião, p. 2

PEC da Transição não deve criar gasto permanente



Na semana passada o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva deu declarações que frustraram quem imaginava uma gestão da economia semelhante à de seu primeiro mandato. O discurso desastrado de Lula é corroborado pelas negociações em curso no Congresso para retirar do teto de gastos o equivalente a R$175 bilhões, destinados a financiar seu novo programa de ajuda aos mais pobres, rebatizado de Bolsa Família.

Na forma como vem sendo encaminhada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição, não há apenas uma permissão excepcional — ou waiver — para gastar R$ 70 bilhões em duas medidas emergenciais: 1) o aumento de R$ 200 reais no Auxílio Brasil previsto no Orçamento de 2023, para mantê-lo em R$ 600 (o gasto subiria de R$ 105 bilhões a R$ 157 bilhões); e 2) um novo benefício de R$ 150 destinado a crianças de até seis anos (mais R$ 18 bilhões). Em vez disso, Lula quer manter todo o programa — R$ 175 bilhões — fora do teto. Isso abriria mais R$ 105 bilhões sob o teto, para o novo governo gastar como quiser.

Há dois problemas nessa proposta. Primeiro, não está claro que cumprir a promessa de manter o auxílio em R$600 e criar um novo adicional para as crianças seja a melhor forma de diminuir a pobreza extrema em que se encontra parte da população. Para a economista Cecilia Machado, o governo eleito deveria garantir a eficácia do novo Bolsa Família no combate à miséria mudando o critério de distribuição.

Não faz sentido, diz ela, um único cidadão receber R$600 e uma família com quatro pessoas ganhar o mesmo valor. A ideia de distribuir R$150 por criança reduz a discrepância, mas não a elimina. É preciso reduzir o valor pago a um indivíduo para poder aumentar o dos demais. O antigo Bolsa Família teve sucesso com bem menos recursos justamente por saber destiná-los com foco a quem de fato precisava.

O segundo problema é a incúria fiscal. A ideia em discussão é estender a licença para gastar por quatro anos, sob a justificativa de bancar outros programas sociais e investimentos. Trata-se de um aumento contratado nos gastos de quase 2% do PIB. De onde sairão recursos para financiá-lo? Não se sabe. Pelo cálculo do economista Samuel Pessôa, estabilizar a dívida pública no patamar atual já custaria 2% do PIB. Com o novo aumento de gastos, seria necessário aumentar a carga tributária entre 3% e 4% do PIB para evitar a explosão da dívida, da inflação e dos juros.

Os economistas a quem Lula tem dado ouvidos podem ser sinceros ao dizer valorizar a gestão das contas públicas. Mas, no pensamento mágico petista, tudo se resolve com o crescimento econômico aumentando a arrecadação e cobrindo o rombo. Só que voluntarismo e investimento público raramente têm o efeito esperado no crescimento. Essa visão não passa de uma quimera.

É inverossímil que alguém com a experiência de Lula acredite que o dinheiro para gastos sociais brotará por geração espontânea. Ao contrário da ex-presidente Dilma Rousseff, ele sempre teve a sabedoria de ouvir pontos de vista diferentes. Há na equipe de transição gente qualificada capaz de aconselhá-lo, a começar pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin. Espera-se que Lula caia em si e que a PEC da Transição traga apenas a autorização para um gasto excepcional em 2023, destinado a um programa social que — qualquer que seja seu nome — precisará ser completamente redesenhado.