O Globo, n. 32605, 13/11/2022. Economia, p. 22
Destruição do Cerrado pode criar barreiras à soja brasileira
Ana Lúcia Azevedo
A destruição da Amazônia está no centro da preocupação mundial sobre mudança climática, mas o Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro, também deve ser objeto de compromissos internacionais de impacto econômico na COP27, a conferência do clima da ONU, que está em curso no Egito.
Num deles, multinacionais e grandes operadoras do agronegócio podem se comprometer a não comprar mais soja oriunda de áreas desmatadas no Cerrado a partir de janeiro de 2025, e isso pode significar prejuízos bilionários para os produtores brasileiros.
Metade da soja exportada pelo Brasil sai do Cerrado, e essa produção pode sofrer restrições lá fora caso o desmatamento do bioma continue a aumentar. Ambientalistas esperam que sejam consideradas as áreas desmatadas a partir de 2020 para algum tipo de restrição, caso contrário pode haver uma aceleração do desmatamento no bioma até 2025.
— Todo compromisso precisa ser retroativo a 2020 ou acabará por incentivar o desmatamento — adverte Mercedes Bustamante, professora titular da Universidade de Brasília (UnB), membro da Academia Brasileira de Ciências e referência em estudos do Cerrado e biodiversidade.
No Cerrado, segundo o Código Florestal de 2012, é possível desmatar 65% de uma propriedade, nas áreas de transição para a Amazônia, e 80% no restante do bioma.
Segundo o MapBiomas, de 1985 a 2021, a área de Cerrado convertida em plantação de soja aumentou 1.443%. A análise revelou que a soja avança tanto pela transformação de pastagens em lavouras quanto na conversão direta de vegetação nativa em plantação.
Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, afirma que 2020 deve ser a data de corte adotada pelos acordos da COP27, seguindo o que já foi estabelecido pelo projeto de lei aprovado em setembro pelo Parlamento Europeu e que proíbe a entrada na União Europeia (UE) de commodities associadas ao desmatamento, como soja, carne bovina, madeira, cana-de-açúcar e palma, entre outros produtos.
Para entrar em vigor, o projeto precisa ser aprovado pelos 27 países do bloco.
— O processo na UE está bem adiantado e até dezembro deve estar tudo resolvido — diz ele.
Controle com tecnologia
Astrini enfatiza que um compromisso do comércio internacional contra o desmatamento pode finalmente tornar o crime ambiental um mau negócio no Brasil:
— Desmatar é caro, e ninguém derruba a mata se não tiver lucro. Hoje o ambiente é favorável para o crime ambiental porque o governo federal dificultou a aplicação e a cobrança de multas e parou de destruir equipamentos dos desmatadores. Se houver um banimento internacional, a conta da destruição pode ficar cara, a despeito do ambiente nacional favorável.
— É factível controlar, há tecnologia para isso, e a maior parte das operadoras do agronegócio já dispõe de sistemas de monitoramento que permitem dar transparência até a fazenda de origem — afirma Timmer.
Astrini adverte, porém, que, à medida que aumenta a área desmatada, cresce também a dificuldade de rastrear a cadeia produtiva. Isso significa que tanto podem passar impunes produtores que desmatam quanto ser prejudicados aqueles que não derrubam a vegetação nativa.
E é importante destacar que a maior parte da soja produzida hoje no Brasil não é associada a desmatamento, afirma Timmer:
— É uma minoria de produtores que desmata. A soja brasileira pode ser 100% livre de desmatamento e ter ainda maior aceitação de mercado e garantir serviços ambientais, como a regulação do clima.
— Existem 38 milhões de hectares desmatados disponíveis, aptos para a expansão da soja no Cerrado, o que permitiria dobrar a área total de produção do grão no Brasil. Além disso, há mais terra desmatada disponível para a soja em outros biomas, inclusive na Amazônia. Há área para aumentar a produção de soja por gerações sem necessidade de desmatar mais o Cerrado — diz o gerente do WWF-Brasil.
Tampouco será preciso reduzir lucro e produção.
Produtores reagem
Além da UE, os EUA (um forte concorrente do Brasil na produção de soja) também estudam medidas restritivas ao comércio de commodities oriundas de desmatamento e há expectativa de que compromissos nesse sentido sejam apresentados na COP 27.
Porém, a China, que não anunciou qualquer medida restritiva até o momento, a despeito de um discurso de preocupação com a mudança climática, deve continuar a aumentar sua demanda por grãos, sobretudo, soja e milho.
Em agosto, a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) realizou em Brasília o I Congresso Brasileiro dos Produtores de Soja para “afirmar e promover a sustentabilidade da soja brasileira”, numa reação ao cerco.
O evento, informa o documento “Carta de Brasília”, lançado na ocasião, foi “uma reação às ameaças de implantação de barreiras não tarifárias à soja do Brasil e do Mercosul”. No texto, a Aprosoja destaca que “o ganho de produtividade reduziu a demanda por novas áreas agrícolas”.
A Aprosoja nega que algum bioma brasileiro esteja ameaçado pelo plantio de soja e refuta uma moratória, mas assegura que “os produtores de soja brasileiros são em sua totalidade contrários ao desmatamento ilegal”.
Os produtores dizem ainda querer “manter um diálogo franco e transparente com os países compradores de soja brasileira, ficando totalmente abertos para agendas e negociações”.
Avanço no Matopiba
Atualmente, 60% do desmatamento do Cerrado acontece no Matopiba (acrônimo para Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), considerado a maior fronteira agrícola do mundo. Dados do Sistema de Alerta do Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado) mostram que, de 1º de janeiro a 30 de setembro deste ano, foram desmatados 617.280 hectares.
O Maranhão é o estado que mais desmatou, com destaque para o município de Balsas, o que mais derrubou o Cerrado e também o maior produtor de soja do estado e o terceiro do Matopiba. Mas a derrubada da vegetação nativa ocorre também em áreas que se consideravam consolidadas, principalmente em Goiás e Minas Gerais.