O Globo, n. 32603, 11/11/2022. Opinião, p. 2

Hora de descer do palanque

Vera Magalhães


É preciso descer do palanque. Luiz Inácio Lula da Silva precisa se despir do figurino de candidato que envergou ao longo de sucessivas eleições e se assenhorar do aparato de presidente que envergou por oito anos, mas ciente de que encarará uma realidade completamente distinta.

E Jair Bolsonaro precisa entender que perdeu as eleições de forma limpa, e o que lhe resta é governar por esses pouco menos de dois meses de mandato — algo a que vem se furtando nos últimos meses, notadamente desde o segundo turno.

O discurso de Lula nesta quinta-feira foi desastroso em mais de um aspecto. É preocupante que alguém tão experiente, diante de um país cindido ao meio, com um caos institucional instigado pessoalmente pelo atual ocupante do Palácio do Planalto e a par da delicada situação fiscal que herdará, se ponha a falar com a falta de compromisso de quem está em cima de um caminhão de som.

Ao colocar em xeque as metas de inflação, com que, diga-se, se comprometeu ao longo dos oito anos que governou, Lula ignora algo que deveria estar careca de saber: diante de um quadro de descontrole inflacionário, quem paga a conta são justamente os mais pobres, com quem selou um compromisso de campanha legitimado nas urnas por mais de 60 milhões de brasileiros.

Para cumprir essa plataforma sagrada, vitoriosa na eleição, ele não precisa, nem pode, decretar o fim da “tal” estabilidade econômica, pois sem ela só aprofundará o fosso social agravado nos quatro anos de Bolsonaro. Ele sabe disso, e seu entorno também.

Com a fala de apelo populista de que a verdadeira regra de ouro é que ninguém deve passar fome, Lula passa aos agentes econômicos e a investidores que o Brasil precisa atrair a impressão de que não está nem aí para o princípio segundo o qual o governo não pode contrair dívida para pagar despesas correntes, outro que observou quando governou. Foi uma declaração absolutamente desnecessária.

A junção do elogio da gastança à nomeação de praticamente todo o escrete petista dos governos Lula e, sobretudo, Dilma Rousseff produziu a tempestade perfeita. Lula não foi eleito por saudades do PT, e parece que essa ficha não lhe caiu ainda.

Diante disso, não adianta o presidente ainda ironizar o “nervosismo” do mercado, porque tanto essa tensão quanto a insistência de Bolsonaro em tragar as Forças Armadas para um questionamento inadmissível do resultado das eleições só contribuem para tumultuar a transição e o início de seu próprio governo. Para tirar suas promessas do papel, Lula precisará não de sua retórica inflamada, mas de uma grande concertação que acalme a fatia derrotada do eleitorado, retire o receio de quem produz, emprega e investe — e atraia o apoio do Congresso.

É isso que fará Bolsonaro recolher sua sanha golpista. O contrário só contribuirá para atiçá-la. O presidente eleito está correto em questionar o fato de os mesmos que se chocam com suas falas não verem a grande instabilidade propiciada por um presidente que abdicou de qualquer responsabilidade administrativa em nome de uma conspirata, aquartelado no Alvorada.

Cobrar a responsabilidade das Forças Armadas com seu papel constitucional não deve ser confundido, em nome dos interesses do próprio governo que se anuncia, com tripudiar sobre uma suposta “humilhação” dos militares, pois isso apenas faz com que eles se aproximem ainda mais de Bolsonaro, com quem construíram uma identificação e de quem receberam benesses e status nos últimos anos. Desmontar esse aparato que mistura perigosamente as funções institucionais das Forças com um papel político que coloca em xeque a própria democracia requer diplomacia, serenidade e inteligência. Os três atributos passaram longe do discurso palanqueiro de Lula na quinta-feira.