Valor Econômico, n. 4955, 10/03/2020. Opinião, p. A12

Dogmas não podem tirar a oportunidade do Novo Fundeb

Priscila Cruz


A palavra oportunidade vem do latim. Sua origem é o nome que os romanos davam a um tipo de vento - ob portus - necessário para que uma embarcação pudesse adentrar o porto. Os ventos são oportunos ou inoportunos. E quando um ob portus acontece, não pode ser desperdiçado - ou o barco não chegará ao seu destino.

Já o destino, por sua vez, é feito de escolhas. Para um país, a educação ser ou não de qualidade, e para todos, é uma decisão que altera o seu destino. Ou escolhemos manter a situação atual, de baixa prioridade à educação - incluindo a injustificável tolerância a um ministro da Educação incompetente, que promove o atraso e acelera uma gestão ideológica como nunca em nossa história - ou optamos por uma nação que se prepara para um futuro mais próspero.

Educação de qualidade para todos só é possível com políticas educacionais consistentes, continuadas e de larga escala. Os esforços privados ajudam, mas muito pouco. A educação que precisamos depende da política, nos seus dois sentidos: politics e policy.

O Novo Fundeb é a oportunidade que temos para tornar uma política pública de larguíssima escala em um instrumento de financiamento da educação básica que sirva para promover mais equidade e induzir boa gestão e melhores resultados. Nenhuma política educacional deveria ser aprovada sem essas premissas de melhor uso dos recursos públicos.

Esse tem sido o debate promovido no Congresso Nacional, principalmente na Comissão Especial da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 15/2015, na Câmara dos Deputados, que após mais de três anos de discussões, teve um importante marco no último dia 18, com a apresentação do relatório com substitutivo para a PEC do Novo Fundeb.

Como toda política de alto impacto e que atua na distribuição de recursos financeiros, as disputas são acirradas e acabam tirando o foco do que importa, que são os resultados educacionais. Por isso, ganha preponderância no debate público o valor da complementação da União ao Fundo, que o substitutivo propõe aumentar gradualmente de 10% para 20% (cerca de R$ 15 bilhões adicionais).

Um grupo defende ser irresponsável o aumento dos recursos para a educação nos Estados e municípios, “porque já investimos muito, o problema é única e exclusivamente falta de gestão”. Outro grupo, oposto, diz “somente aceitar um Fundeb muito maior, com a contribuição da União quadruplicada, sem alterar as regras”.

Ambas posições colocam a aprovação da PEC do Novo Fundeb em risco e menosprezam a complexa concertação política em curso, recentemente assumida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que felizmente compreendeu seu papel na liderança desse processo. Ignoram, além disso, as evidências que temos à nossa disposição.

Nestes tempos de cacofonias múltiplas, o óbvio precisa ser dito: a educação só será melhor com o fim do sub-financiamento, que ainda afeta inúmeros municípios brasileiros, e com a drástica melhora da capacidade de formulação, articulação, implementação e melhorias contínuas das políticas educacionais, ou seja, da gestão. É necessária certa dose de desconfiança dos gritos fáceis e do olhar míope.

Mas a beleza da democracia e dos debates parlamentares, quando exercitados com transparência e foco - neste caso, no aluno -, é que conseguem decantar visões dogmáticas e fazer valer o interesse da população e do país, que clamam por uma educação melhor. Com o relatório apresentado, crescem as chances desse cenário.

Com efeito, o texto da deputada professora Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO) ainda tem importante espaço para aprimoramentos. Dentre os principais, tem sido destacados pelo Todos Pela Educação:

Ademais, e em que pese ser objeto de outra lei, eventual aumento significativo no valor mínimo do Fundeb reforçará a necessidade de alterar os critérios de reajuste do Piso Salarial do Magistério, hoje atrelado àquele valor, para que municípios e Estados possam honrar os salários de seus professores. A regra atual torna a valorização do magistério uma quimera, porque gera custos fiscais insustentáveis e imprevisíveis - exatamente o oposto do que se requer para criar e implantar carreiras atrativas para seus docentes. Esta mudança, já evidenciada pelo Todos Pela Educação, recentemente também se tornou alvo de alerta por outros atores, como a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), secretários estaduais de educação e governadores.

Isto posto, o relatório está longe de ser uma colcha de retalhos, ato de irresponsabilidade ou vitória do governo federal, como alguns têm alegado. Ao contrário, é fruto de uma trabalhosa negociação liderada pelo Congresso envolvendo Estados, Municípios e o Ministério da Economia - que desde o ano passado vem substituindo um ausente e errático MEC nas discussões sobre o tema - e seu caminho até aqui sugere que deverá sair vitoriosa a posição ponderada e informada pelas evidências, resultando em um Novo Fundeb maior, mais bem orientado em benefício dos municípios e alunos mais pobres e capaz de induzir melhorias na qualidade da educação.

Voltemos então à oportunidade, palavra poderosa. Pergunte a qualquer mãe o que ela quer para seus filhos: oportunidade de uma vida melhor. E com o novo Fundeb, é isso que temos em nossas mãos.

Nessa reta final de aprovação do relatório, é natural a subida de tom das defesas de interesses e visões particulares. O que não pode ser aceito, no entanto, é o descaso com o processo de construção e com os avanços atingidos até aqui. Estamos perto de consagrar o que pode significar uma nova onda positiva para a educação brasileira e, quem sabe, o começo de um legado que todos nós deixaremos para o Brasil. Este deve ser o foco.

Priscila Cruz é presidente-executiva da Ong Todos Pela Educação.