Valor Econômico, n. 4955, 10/03/2020. Brasil, p. A4

Coronavírus expõe fragilidades da atenção básica

Leila Souza Lima 


Se viesse a enfrentar situação similar à da Itália - onde a rápida expansão do surto de coronavírus culminou com o decreto de quarentena para toda a população -, o Brasil possivelmente teria dificuldades em suprir a população de atendimento na rede de atenção básica, alertam especialistas.

Embora considerem que as ações ministeriais na área de vigilância em saúde estejam corretas, principalmente na transparência da comunicação, os técnicos apontam que a fragilização do Sistema Único de Saúde - há anos subfinanciado - se agravou com as medidas de austeridade fiscal vigentes desde 2017, que impuseram restrições nos repasses orçamentários - e, com isso, à sua manutenção e aos investimentos.

Quanto à possibilidade de uma medida drástica como a adotada no país europeu, há consenso de que o isolamento em grupos só cabe quando ocorrem transmissões concentradas. Já não é mais o caso do Brasil, uma vez que até ontem só não havia registros suspeitos em quatro Estados.

“Nas transmissões infecciosas pela via respiratória, apesar de ser recurso antigo, o isolamento já comprovou não ser eficaz. Nunca se conseguiu conter dessa forma o avanço de gripes. Podem haver tentativas, como foi o caso de Wuhan [na China, onde surgiu o primeiro caso de coronavírus], e isso não é um objetivo menor. Mas há outras formas de tentar deter a progressão, como o isolamento individual voluntário”, explica Claudio Maierovitch, médico da Fiocruz.

Maierovitch, que enfrentou a emergência internacional do zika vírus quando foi diretor do Departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2016, e passou pelas duas maiores epidemias de dengue no país, em 2015 e 2016, observa, porém, que a postura não é incentivada em nossa cultura. “Pessoas com febre e gripadas deveriam ficar em casa. Milhares morrem todos os anos de gripe. ”

Para o sanitarista, mudanças dependeriam de recomendação dos órgãos de saúde, para então ser acatada pelas corporações, e os doentes não serem criticados ou punidos por faltarem ao trabalho. O prejuízo com o contágio em série, lembra ele, é muito maior.

“A quarentena só se justifica quando há transmissão comunitária. Mas, antes de medidas extremas assim, há uma série de outras ações, como o governo orientar para que se evite realizar eventos com aglomeração de pessoas. Para os casos que não exigem internação, a quarenta domiciliar é uma alternativa adequada”, diz Adriano Massuda, professor da FGV e pesquisador no Departamento de Saúde Global de Harvard.

Ele vê com preocupação o descompasso entre o Executivo e a área técnica de saúde, referindo às manifestações convocadas para o dia 15: “O governo, em geral, vai em outra direção, como quando o presidente [Jair Bolsonaro] chama a população para a manifestação, o que não é correto agora. Estamos na iminência de a OMS [Organização Mundial de Saúde] decretar uma pandemia”.

Segundo destaca Massuda, o Brasil tem tradição em enfrentar crises de saúde com as características que o surto de coronavírus apresentou até agora. “O país se aprimorou tanto do ponto de vista normativo, desenvolvendo legislação que permite a alocação de recursos de forma extraordinária, e também prático, pois tivemos, por exemplo, o preparo para a Copa do Mundo e a Olimpíada e a resposta da vigilância ao zika vírus. ”

A maior preocupação do médico é que a crise econômica já vinha provocando sobrecarga no SUS. “Houve redução importante de pessoas com planos de saúde que passaram a recorrer ao SUS, o impacto da saída de profissionais do programa Mais Médicos, temos problemas com estoque de medicamentos e insumos. E tudo foi agravado pela austeridade fiscal. ”

Ele alerta ainda que o setor privado pouco pode contribuir no caso de agravamento. “Não tem tradição em lidar com emergências de saúde, faz um trabalho secundário. O protagonismo na resposta quando a situação se complica é do setor público. ”

De acordo com Maierovitch, a área de vigilância, responsável por detectar as alterações de padrão nas epidemias, além de determinar e tomar as ações de controle necessárias, está bem organizada no Brasil há pelo menos três décadas. “Tanto no âmbito federal, do Ministério da Saúde, quanto regional, das secretarias estaduais e municipais”, diz. “ Entretanto, boa parte das ações de controle depende da interação da vigilância com os serviços de saúde. É nesse ponto que os problemas podem surgir”, afirma.