Valor Econômico, n. 4954, 06/03/2020. Eu e Fim de Semana, p. 31

Uma esperança para mulheres de baixa renda com câncer de mama

João Luiz Rosa


Por duas vezes, Gabriella Antici enfrentou o câncer de mama. Em outubro de 2015, depois de receber o primeiro diagnóstico, seu pensamento foi imediatamente para um filho que entrara numa universidade americana e tinha se mudado para os Estados Unidos. “Pensei: não posso morrer. Tenho de ficar viva para vê-lo se formar”, relembra. Gabriella tinha 48 anos à época. Dois anos depois, quando outro câncer apareceu, sua atenção se voltou para uma desconhecida - uma atitude que mudaria tanto sua vida como a de muitas brasileiras que, como ela, são diagnosticadas com a doença todos os anos.

Era o fim de setembro de 2017 e Gabriella tinha chegado do hospital quando uma amiga ligou para saber sobre seu estado de saúde. Ela acabara de passar pela segunda cirurgia na mesma mama em 18 meses - a intervenção anterior ocorrera em março de 2016. Para tratar do primeiro tumor, a recomendação médica foi passar por quatro meses de quimioterapia antes da mastectomia. Na vez seguinte foi feito o inverso, com a cirurgia antes da quimioterapia.

Era isso que Gabriella - um nome com sólida reputação no mercado financeiro - explicava para amiga ao telefone, quando esta contou que sua empregada, de 40 anos, também tinha câncer de mama, mas precisaria esperar seis meses para começar o tratamento no serviço público de saúde.

“Senti uma espécie de calor e disse que aquilo era desumano”, diz Gabriella, hoje com 52 anos. “Foi uma coisa divina. ” Depois de desligar o telefone, ela não conseguiu mais parar de pensar em como ajudar mulheres que viviam drama semelhante ao dela, sem contar com recursos financeiros necessários para buscar a cura. “O tratamento é eficaz em 95% dos casos de câncer de mama, mas desde que a doença seja diagnosticada suficientemente cedo”, afirma. A demora para detectar o tumor, ou tratá-lo depois do diagnóstico, faz com que a taxa de mortalidade no Brasil seja mais de três vezes maior que a dos EUA: enquanto 8% das americanas morrem em decorrência da doença, entre as brasileiras a incidência é de 25% - uma em quatro pacientes.

A indignação de Gabriella foi o passo inicial de um trabalho de mobilização que, em junho de 2018, resultaria na criação do Instituto Protea. O nome, emprestado de uma flor da África do Sul com enorme capacidade de se adaptar a ambientes inóspitos, é uma metáfora dos percalços que pacientes de baixa renda têm de enfrentar para se tratar no sistema público de saúde, o SUS, do qual 75% da população depende exclusivamente.

“Como os hospitais públicos não têm capacidade de atender a todos, o SUS credencia hospitais particulares ou filantrópicos. Mas o repasse de recursos chega, no máximo, a 40% do custo de atendimento”, diz Gabriella. “Por isso, esses hospitais limitam o número de pacientes. Não é que não queiram tratar das pessoas, mas não dá para virar um buraco sem fundo. ”

A estratégia do Instituto Protea é pagar ao hospital o valor que não é reembolsado pelo SUS e, dessa forma, reduzir a fila de atendimento. O primeiro acordo foi fechado com o Hospital Santa Marcelina, que destina 90% de seu atendimento ao SUS. O hospital fica na zona leste de São Paulo, a mais populosa da cidade e onde estão alguns dos bairros mais carentes.

“Desenhamos a quatro mãos [com o hospital] o Projeto Amar”, diz Cristina Assumpção, diretora-executiva do Protea. A sigla do programa, iniciado em outubro de 2018, significa “atendimento do câncer de mama de alta resolutividade”.

No Santa Marcelina, pacientes de 63 unidades básicas de saúde são recebidas toda quarta-feira, depois de passar por uma triagem em um esperar 45 dias, em média, para a primeira consulta depois de receber o diagnóstico. Agora, aguardam 24 horas. “Contratamos um médico para dar plantão no hospital às quintas-feiras. Assim, as pacientes que têm a doença confirmada na quarta-feira podem voltar no dia seguinte”, diz Gabriella.

Além de uma tortura psicológica para a paciente, a demora no primeiro atendimento pode ter reflexos diretos nos efeitos do tratamento. Em 33% dos casos atendidos pelo SUS, o tumor já está em estágio avançado quando é detectado, podendo ultrapassar 50% dependendo do hospital. Na rede privada, para comparar, o índice é de 14%.

A situação é tão grave que se tornou alvo de regras legais. A Lei 12.732, de 2012, já estabelecia o prazo máximo de 60 dias para o início do tratamento de câncer de mama pelo SUS depois do diagnóstico. Em outubro do ano passado foi promulgada a Lei 13.896, que incluiu um parágrafo na legislação existente determinando que os exames necessários para a confirmação do diagnóstico não ultrapassem 30 dias.

A estimativa do Instituto Nacional do Câncer é que serão registrados 66.280 novos de casos de câncer de mama no Brasil neste ano. A incidência da doença no país costuma ser alta. Em 2018, o Brasil figurou na segunda faixa mais elevada entre todos os países, que são agrupados em cinco faixas, com 62,9 casos por 100 mil mulheres.

Por mês, o Instituto Protea ajuda no tratamento de 22 novos casos no Santa Marcelina. A previsão para este ano é de um aumento de 18%, com 26 novas pacientes sendo atendidas a cada mês. No primeiro ano de atuação do Projeto Amar, entre novembro de 2018 e o do ano passado, 864 mulheres foram beneficiadas de alguma maneira pelas ações do instituto, afirma Cristina. No tratamento propriamente dito, foram 264 pacientes.

Alguns casos são especialmente complexos. O Protea encontrou um parceiro para facilitar as mamotomias, um tipo de biópsia empregada quando é difícil encontrar o nódulo. Para se submeter ao exame, a paciente precisa ser anestesiada em um centro cirúrgico, numa intervenção especialmente dispendiosa. Cada agulha utilizada custa R$ 1,5 mil e só pode ser usada uma vez. E cada nódulo exige o uso de uma agulha diferente.

Sob a parceria, a clínica Nova Medicina Diagnóstica doa uma agulha por paciente, além da mão de obra especializada. “Uma van leva as mulheres de Itaquera [na zona leste] até a Vila Nova Conceição [na zona sul]. Assim conseguimos liberar o centro cirúrgico [do Santa Marcelina] e reduzir o tempo de espera das cirurgias de 75 dias para menos de 30”, conta Gabriella. “É tudo uma questão de gestão, de dizer quais são os gargalos. ”

Gestão está no centro da carreira profissional de Gabriella. Sócia da Ace Gestão Global, empresa de investimento criada em 2013 para cuidar exclusivamente do portfólio de ações de um “family office” - o nome dado a empresas que administram fortunas familiares -, ela trabalhou anteriormente no Goldman Sachs, no qual permaneceu 16 anos. Antes disso, foi vice-presidente do HSBC, sempre na área de gerenciamento de ativos. É formada em economia pela PUC-RJ e tem mestrado em finanças pela Escola de Administração Sloan, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT.

Casada, mãe de três filhos, Gabriella tem, entre suas tarefas, o desafio de extrair o melhor rendimento possível do modelo financeiro que sustenta as atividades do instituto, do qual é diretora-presidente. Uma das principais frentes na captação de recursos é a contribuição individual. Em um ano, o número de doadores do Protea saiu de zero para pouco mais de 1,2 mil pessoas, com dois terços delas contribuindo mensalmente, com somas a partir de R$ 10. Os demais fizeram doações uma única vez.

A meta para este ano é aumentar o número em 200 doadores mensais, mas para isso o Protea tem de se tornar mais conhecido do público e conquistar sua confiança. “O que ‘pega’ na hora de o brasileiro doar é a credibilidade [da instituição]”, diz Gabriella. “Estamos trabalhando com uma auditoria para atestar que nosso trabalho é sério. ”

Em algumas ocasiões, nas quais a doença é mais lembrada, as contribuições aumentam. “Arrecadamos bastante no Outubro Rosa [mês da campanha de conscientização global do câncer de mama], mas há mulheres com câncer todos os meses”, diz a fundadora do Protea. “Nosso sonho é chegar a 1 milhão de doadores que contribuam com R$ 10 por mês. ”

O instituto também tem procurado parcerias com empresas, sob diferentes formatos. Essas alianças têm rendido histórias curiosas, como a da Lojas Marisa. Em 2018, como parte do Outubro Rosa, a rede varejista lançou o “sutiã do recomeço”, uma peça com compartimento interno para que mulheres com mastectomia possam usar uma prótese móvel. O produto foi criado depois que uma cliente, a advogada

Elizabeth Trammel, enviou uma carta à empresa. No texto, ela explicava que encontrara, em uma loja da rede, o único sutiã que a havia ajudado a recuperar a autoestima depois da cirurgia, mas que a peça não era mais vendida. Em resposta, a Marisa criou o novo sutiã e fez uma campanha em torno da peça.

Meses depois, conta Cristina, a Lojas Marisa entrou em contato com o Protea para informar que decidira destinar a renda obtida com o sutiã a uma organização não governamental e escolhera o instituto para receber a doação. Em outubro do ano passado, o “sutiã do recomeço” voltou às lojas da rede, desta vez acompanhado de um logotipo do instituto.

Até agora, foram fechadas cerca de 50 parcerias com empresas, afirma Cristina. Em algumas, o acordo prevê atitudes simples, como o uso pelos funcionários do lacinho rosa que remete ao combate à doença. Outras companhias convidam especialistas do Protea para fazer palestras ou ajudar na elaboração de campanhas de prevenção. As próprias companhias decidem o valor com que querem contribuir, quando fazem doações.

O J.P. Morgan propôs uma disputa aos funcionários em São Paulo para contribuir com o Protea. Reunidos em um restaurante, e divididos em duas equipes, eles participaram de uma happy hour na qual os diretores do banco faziam os drinks. Em algumas horas, a brincadeira rendeu R$ 35 mil, que reforçaram o caixa do instituto.

O aumento dos recursos é fundamental para o Protea fechar acordos com mais hospitais e diversificar suas ações. Encabeçado por um conselho de 12 mulheres, seis das quais já tiveram câncer, o instituto tem uma série de projetos engatilhados. Um deles é trazer ao país uma tecnologia de inteligência artificial desenvolvida pelo MIT para diagnosticar nódulos em estágios bem primitivos, difíceis de detectar sob os exames atuais. O primeiro passo é validar o sistema no Brasil.

O Protea também planeja começar um trabalho de pesquisa para entender o percurso que as mulheres fazem até chegar ao Santa Marcelina - uma forma de identificar problemas e sugerir melhorias nessa rota - e está recebendo voluntários de diversas disciplinas, que vão da psicologia até ioga, com o objetivo de criar grupos em que as mulheres poderão compartilhar suas histórias e receber apoio multidisciplinar.

Pela experiência familiar, Gabriella sabe o quanto isso é importante. Antes dela, uma avó teve câncer de mama - diagnosticado aos 70 anos de idade -; uma tia, com 82 anos; além da irmã, que descobriu o tumor quando tinha 34 anos e havia acabado de terminar um ciclo de amamentação. Na época, Gabriella morava em Londres e decidiu voltar ao Brasil com a família. Felizmente, nenhum desses casos se mostrou fatal.

Gabriella perdeu o cabelo ao longo da primeira quimioterapia. Não se importou muito. “Foi um tratamento pesado, mas me senti grata por ter uma doença tratável”, recorda-se. Hoje plenamente recuperada, ela sempre aborda mulheres que saem em público de turbante ou chapéu em consequência dos medicamentos. Ao se aproximar, ela conta que passou pela mesma coisa e, numa nota de esperança, diz que está curada. “Depois de passar por algo assim, a melhor coisa é a solidariedade que você recebe”, diz.