O Globo, n. 32594, 02/11/2022. Brasil, p. 12

Em três frentes

Arthur Leal
Carla Rocha
Pâmela Dias


Apesar dos avanços, as mulheres brasileiras ainda estão longe de chegar aonde gostariam. A igualdade de gênero, destacada como prioridade pelo presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva (PT), enfrenta desafios em três frentes importantes: na produção científica, na representatividade política e na busca de igualdade salarial.

As mulheres, embora sejam responsáveis por quase metade das pesquisas no país, aparecem bem menos na liderança acadêmica, em publicações e bolsas concedidas. A presença em cargos públicos está longe da paridade desejada. E os salários perdem para os dos homens, que foram 27,6% maiores no último trimestre deste ano, de acordo com o IBGE.

Na ciência, há uma expectativa de que a criação de um Ministério da Mulher, prometido para o governo Lula, possa acolher demandas antigas. Uma das principais, de acordo com a antropóloga Miriam Grossi, diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, são mecanismos para aumentar o acesso de cientistas a bolsas de excelência. Grossi diz que as pesquisadoras, apesar da produção científica expressiva, são muitas vezes prejudicadas, pois as instituições levam em consideração os últimos cinco anos para a pontuação do candidato. No caso das mulheres, período muitas vezes interrompido por uma gravidez.

— Houve grande avanço na última década. As bolsas de iniciação científica contemplam muitas jovens. Mas menos de 30% das bolsas de excelência do CNPq, de nível 1A, vão para as mulheres. Quando avançamos na pirâmide do conhecimento, sofremos mais exclusão. A literatura mostra que isso acontece, em grande parte, devido a interrupções na carreira pela maternidade, por exemplo — explica Miriam, acrescentando que algumas universidades e institutos de pesquisa já consideram em seus editais que a pontuação desconsidere a produção de dois anos subsequentes à maternidade e contemplem os dois anos anteriores. — É uma demanda muito antiga, mas não é uma política pública.

Segundo o CNPq, em 2021, eram 10.406 homens com bolsas em todas as categorias, contra 5.642 mulheres. De acordo com a Capes, as mulheres são maioria na pós-graduação (54%, ou 195 mil de 364 mil), mas não chegam a ter importância proporcional na pesquisa científica.

— Embora sejam maioria numérica, pesquisadoras ainda lutam por mais respeito e oportunidades. Mesmo as que conseguem vencer todos os desafios para alcançar cátedras ainda têm de superar toda uma sorte de práticas discriminatórias, intimidatórias e desrespeitosas — reconhece a presidente da Capes, Cláudia Queda de Toledo.

Educação é central

Há vácuos de produção científica feminina em grandes universidades, que podem variar em cursos mais associados a homens. Estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP com uma amostra de mais de 3 mil professores aponta que 61,7% da produção científica na universidade paulista é de homens. Os homens também têm índices maiores de publicações, de citações por ano, de produtividade e de impacto científico.

Na Unesp, a professora Lídia Passos afirma que nos últimos cinco anos tem havido uma grande transformação. Ainda assim, as professoras, que representam 52% de toda a universidade, classificam como “árdua” a tarefa de se fazerem ouvidas.

— Os espaços públicos não têm distinção de salário. Mas no convívio interno, há uma luta para que nós sejamos tão vistas, ouvidas e valorizadas quanto os homens, simplesmente porque há o imaginário de que eles são feitos para esses papéis. Quando na verdade só têm mais oportunidades — observa Passos.

Primeira mulher presidente da Associação Brasileira de Ciências, Helena Nader afirma que uma nova estrutura de país só será possível através da educação.

— A cultura conservadora foi intensificada no governo Bolsonaro, da mulher dona de casa e cuidadora dos filhos. A história do menino veste azul, a menina veste rosa. Todo mundo fala da Finlândia, da Islândia, da Dinamarca, mas nestes países meninos e meninas brincam de boneca e de casinha, de fazer comidinha e de serem engenheiros. Ou a gente muda a maneira como educamos nossos filhos ou não vamos avançar — alerta a biomédica.

Minoria na política

A política está também entre os espaços onde a mulher ainda não tem tanta voz, especialmente se for negra. Embora sejam a maioria da população brasileira e acumulem mais anos de estudo que os candidatos homens, as mulheres foram 14% do total de candidatos a prefeito há dois anos, segundo um estudo divulgado este ano pela Oxfam Brasil e o Instituto Alziras. Nas câmaras de vereadores, elas equivaleram a 35% das candidaturas, por influência da política de cotas que determina que as legendas preencham ao menos 30% de suas listas com mulheres.

Nas eleições deste ano, o número de eleitas para a Câmara dos Deputados cresceu 18%. Apesar do aumento de 77 para 91, o maior número da História, elas ainda representam 17,7% do Congresso, segundo levantamento feito pelo +Representatividade, em parceria com o Instituto Update. Um levantamento do Mulheres Negras Decidem (MND) mostrou que candidaturas negras são ainda menores: entre as deputadas, pouco mais de 2% são pretas ou pardas. E apenas 1% do Senado é feminino e negro.

— As mulheres negras tiveram mais de 5 mil candidaturas, um número expressivo, apesar de o resultado nas urnas não ter se concretizado. Cada participação é uma semente, que deve ser regada com investimento na saúde, educação e empregabilidade feminina, para que elas tenham mais recursos para chegar a postos públicos — defende Gabrielle Abreu, coordenadora do MND.

Homens ganham mais

Nas empresas, o cenário também é desfavorável. Em julho, agosto e setembro, em pesquisa do IBGE com 173 mil pessoas, constatou-se que homens ganharam em média R$ 2.835, e mulheres, R$ 2.221. Entre os desempregados, as mulheres são maioria (54,6%). Nos mesmos períodos de anos anteriores, a variação dos salários a favor dos homens ficou em torno de 27% a 28% superior aos ganhos de mulheres.

A equidade salarial é garantida por lei. Mas na prática, há defasagem. A desigualdade se intensifica na faixa de 25 a 49 anos entre mulheres que tenham crianças em casa com até 3 anos de idade. O nível de ocupação fica em 54,6%, contra 67,2% das que não têm filhos nessa faixa etária. No caso dos homens, a situação se inverte: com filhos na mesma idade, eles levam vantagem, e a ocupação alcança 89,2%, contra 82,4% dos que não têm filhos na mesma faixa etária.

Para a antropóloga Mirian Goldenberg, medidas precisam ser adotadas não só para igualar salários, mas para valorizar as mulheres em todo o espectro social, sobretudo em profissões tidas como femininas e que tendem a ser depreciadas.

— Igualar o salário é fundamental, mas o mais importante é fazer com que profissões que não são tradicionalmente masculinas, como enfermagem e professora, tenham vencimentos mais dignos. As profissões do cuidado são femininas e são as que têm os menores salários e menos prestígio. É preciso uma revolução para a mulher — diz Goldenberg.