O Globo, n. 32593, 01/11/2022. Política, p. 10

Não vamos trocar um aparelhamento por outro na PF

Entrevista: Flávio Dino


Como senhor vê o silêncio do Bolsonaro sobre a vitória de Lula?

Infelizmente, é coerente com uma pessoa que tem muita intolerância com as boas práticas democráticas. É o Bolsonaro sendo Bolsonaro. Na verdade, de modo oportunista, com esse silêncio, ele está estimulando essas arruaças nas rodovias. Mais uma vez, Bolsonaro agride o Estado democrático de Direito.

Durante a eleição, vimos denúncias contra a atuação da Polícia Rodoviária Federal. Como vê o risco de que ela não atue como deveria?

Houve nessa eleição aparelhamento das instituições para fins partidários. Se você olhar a quantidade de operações que a PRF fez ao longo de 2022 inteiro, vai identificar que ontem houve comportamento fora do padrão (a corporação fez ações voltadas à fiscalização de transporte de passageiros, que prejudicaram a chegada de eleitores em locais de votação). Em relação a esse episódio dos caminhoneiros, temos crimes sendo perpetrados em flagrante, e a PRF está, em muitos casos, apenas acompanhando.

Há temor de que esses atos se alastrem pelo país?

Até agora, são movimentos isolados, mas não significa que não sejam graves. É um desafio concreto para o governo federal e, em última análise, para o Judiciário. Não cabe ao presidente eleito tomar qualquer providência. Cabe ao atual governo aplicar a lei. Vemos internamente e internacionalmente o reconhecimento quanto à legitimidade da eleição. Os bloqueios das rodovias são lamentáveis, mas não parecem sinalizar risco de golpe de Estado, ou seja, de nenhuma virada de mesa no Brasil nesse momento.

Como o senhor vê manifestações ideológicas a favor de Bolsonaro vindas de parte das forças policiais?

Temos, infelizmente, essa ideologização de instituições que devem ser de Estado, ou seja, apartidárias. Uma coisa é a posição pessoal de cada cidadão ou cidadã, que deve ser sempre protegida. Agora, ele não pode usar a sua função pública, a farda e o armamento para militar a favor de uma posição ideológica. Vimos isso também no Judiciário e no Ministério Público. É preciso que a gente vá com calma conversar com essas corporações, porque a imensa maioria dos que a integram também não concorda com essa ideologização.

A necessidade de aumento da interlocução com as forças policiais será um dos desafios do governo Lula?

O desafio é quebrar a fake news. Quando governou, Lula teve uma atitude de muito respeito com as Forças Armadas e com a Polícia Federal. Quando você olha o retrospecto, ele já indicava essa busca de colaboração. Agora, o desafio é maior, é preciso essas corporações, sobretudo o sistema de Justiça e Segurança Pública, para a legalidade. Não é trazer para a esquerda. Não é trocar um aparelhamento pelo outro. É colocá-lo a serviço de uma visão republicana, de fato, democrática.

O atual governo foi acusado de tentar interferir na Polícia Federal em diferentes ocasiões. Quais mudanças poderiam ocorrer na gestão da PF?

A prática pretérita (dos governos de Lula) ilumina o futuro. Nós não queremos uma polícia ideologizada nem para direita ou para esquerda. A polícia tem que ter como parâmetro o profissionalismo. E, para isso, ela deve ter a marca da isenção. Não vamos trocar um aparelhamento por outro. Em vez de o aparelhamento, colocar a legalidade. Nós sabemos que as autoridades policiais, de um modo geral, têm a independência técnica, mas isso não pode significar uma instituição desgovernada, que possa fazer qualquer coisa, como se omitir diante de cometimento de crimes, a exemplo da interdição de estradas federais.

O futuro governo pegará um Orçamento que não prevê Auxílio Brasil de R$ 600. Como será a articulação para adequar Orçamento às propostas de Lula?

Diretamente, não participo disso, porque cabe a área mais política do entorno de Lula. Mas já na próxima semana esse diálogo deve se intensificar. Em ordem cronológica, o desafio é finalizar com arruaças nas estradas; segundo, consolidar a transição nos termos da lei; em terceiro, a composição da equipe; e em quarto, diálogo com o Congresso.

Algum interlocutor do Palácio do Planalto ou do entorno de Bolsonaro já entrou em contato com Lula ou com alguém próximo a ele?

O silêncio do presidente da República é grave, inclusive, por esse aspecto. Cabe a ele nomear quem vai ser a contraparte do coordenador da equipe de transição de Lula. Bolsonaro vai ter que fazê-lo, é questão de tempo. Não é uma questão de vontade do presidente, mas da lei.

Como o senhor acha que será a transição? O que farão caso haja sonegação de informação?

Sempre há expectativa de que a transição seja feita conforme a lei, que determina a ampla transparência. Acredito que a lei vai ser cumprida, mesmo não sendo de acordo com as regras da boa educação ou da cortesia por parte do atual presidente da República. Mas, se a lei não for cumprida, é claro que o Poder Judiciário tem que ser chamado.

Há possibilidade de vocês recorrerem ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e ao presidente da Câmara, Arthur Lira, para facilitar o processo de transição?

Ambos são atores muito importantes em qualquer conjuntura. Eu acredito que vamos ter uma nova Câmara, um novo Senado, novas presidências de Câmara e Senado a partir de fevereiro. Até lá, as questões emergenciais devem ser tratadas com Lira e Pacheco, pois legitimamente são eles que dirigem as Casas parlamentares.

Há um nome forte para coordenar a transição?

Eu tenho a certeza de que o próprio presidente Lula é o condutor principal. Temos um tempo curto. O fato de Lula ter sido presidente e Geraldo Alckmin governador ajuda bastante, porque são duas pessoas com muita experiência administrativa.

O senhor está lidando com propostas da área de Justiça e Segurança Pública para participar da transição?

Eu pertenço à área da Justiça e Segurança Pública há 32 anos, desde que me formei em Direito. Eu fui juiz. Estou me preparando para atuar nessa área a vida inteira. Agora, se essa atuação vai ser no Senado ou em outro lugar, depende do presidente Lula. Para mim, não vai alterar em nada o nível de cooperação que eu terei.

É possível se rever os decretos de Bolsonaro que estimulam o armamento da população?

É imprescindível fazer uma revisão. Vimos o Roberto Jefferson dando tiro e jogando granadas em policiais federais e, depois, a deputada Carla Zambelli com uma pistola em punho correndo pelas ruas de São Paulo. Armas são necessárias, infelizmente, porém, não podem estar nas mãos de qualquer pessoa. Esses decretos são absolutamente ilegais, são uma ameaça à segurança pública. A retomada da visão correta alinhada com as melhores práticas internacionais é uma prioridade que a gente deve buscar.