O Globo, n. 32593, 01/11/2022. Opinião, p. 3

Mano Brown 2022

Carlos Andreazza


Até a conclusão deste artigo, no começo da noite de 31 de outubro, Bolsonaro não havia se pronunciado sobre a derrota. Não que surpreenda. Foi péssimo presidente — derrotado, sobretudo, por haver sido péssimo. Teria de ser péssimo perdedor.

Não surpreende, nem há muito mistério. Fez o diabo para camuflar — maquiou até posto de gasolina — a ruindade de sua gestão; e fracassou. Uma façanha. Derramar, concentradamente, R$ 100 bilhões — a população a lhe financiar a campanha — e perder. O silêncio, previsível, compondo a atitude padrão de um agente para o conflito que joga com expectativas. Mas a quem sobraram poucas possibilidades.

Escrevo isso para que não se superestime sua força. Tendo feito tudo o que fez, estranho seria se perdesse de lavada. Derrotado, não lhe resta muita margem.

Não que seja carta fora do baralho. É o presidente. Não que não tenha base social própria. Tem. Nem que não canalize o sentimento antipetista, esse gigante subestimado. Canaliza. Ainda. Era óbvio que seria competitivo. É óbvio que ainda provocará distúrbios. Café frio também mancha.

A questão é: mesmo com a anistia dada aos crimes e criminosos da pandemia, teria Bolsonaro chegado tão próximo de vencer sem o orçamento secreto e tudo quanto pôde comprar, aí incluídos PEC Kamikaze e pacotão de bondades? Teria, sem os efeitos da sociedade com Arthur Lira e Ciro Nogueira?

E o que será de Bolsonaro, sem mandato, encerrada — hoje ou amanhã — essa sociedade?

Cuidemos para não supervalorizar a potência antissistema do bolsonarismo, até para que possamos medir o real assentamento da direita sectária entre nós.

Bolsonaro não foi o primeiro incompetente a presidir o Brasil; mas foi o primeiro, desde 1998, a concorrer e não se reeleger. A concorrer, gastar fundos tomados do futuro para se reeleger e não conseguir. Péssimo presidente. Terá de ser péssimo perdedor. Sem surpresa. Surpreendente a ser se tivermos um período de transição minimamente saudável. Surpreendente se ele não impuser dificuldades à normalização do trânsito institucional.

O presidente atravanca. Todo cidadão brasileiro precisa de estabilidade; e Bolsonaro só existe no choque e na imprevisibilidade, daí por que seja impossível construir ou reformar algo sobre o solo de sua presidência, donde seja o antibolsonarismo, acima de tudo, uma manifestação de cansaço.

O Brasil é um país exaurido.

Sim. Bolsonaro falará em algum momento. Talvez já o tenha feito no intervalo entre meu ponto final e a circulação do matutino. A este texto interessa medir o grau de esgarçamento da fibra republicana para que haja quem considere bom o silêncio. A alternativa sendo que falasse — e falará — para atacar. Sua existência competitiva a depender do cultivo resistente — sócio ainda de Valdemar Costa Neto — da persona antiestablishment.

Falará; mas me permita, você que me lê, escrever que está falando — que Bolsonaro está falando — desde o fim da noite do domingo em que Lula foi eleito. Ou não serão os caminhoneiros — e os patrões dos caminhoneiros — que fecharam rodovias e impediram a livre circulação de pessoas e bens expressões de Bolsonaro? Ou não será a atividade da Polícia Rodoviária Federal, que na véspera — dia de eleição —se mobilizara para fiscalizar ônibus com pneus carecas e que, horas depois, cruzaria os braços (para não aplaudir) ante a obstrução de estradas, expressão de Bolsonaro?

É o mais próximo que chegaremos da tal venezuelização. O bolsonarismo é isto: fenômeno para o conflito que acusa influentemente o risco de venezuelização do país, enquanto alimenta e explora atos milicianos capazes de gerar desabastecimento.

Não haverá surpresas. Haverá sinais disparados em sentidos diversos.

Não serão fáceis os próximos dois meses. Serão dificílimos, como duríssimos serão os próximos anos. O buraco é fundo e ainda está sendo cavado. O problema sendo menos Bolsonaro e mais o ambiente em que o bolsonarismo é possível.

Este Brasil cansado não é, não exatamente, um país dividido. É, antes, um depauperado. Pela miséria, pela exclusão. Pelo ressentimento dos excluídos. Dos alijados.

São a desesperança profunda, uma percepção difusa de não pertencimento, e as formas ligeiras — oportunistas — como se enfrenta esse sentimento de inexistência que dividem; que aprofundam o fosso que aparta o Brasil da República; que dão berço a bolsonaros.

O país perdeu — perdeu-se de — qualquer senso de elite. Não falo, por óbvio, de elite econômica. Mas de um sentido de delegação e confiança. De liderança. A República progressivamente percebida como uma fachada operadora de causas privadas.

E então me lembro do que disse Mano Brown em 2018, no palanque de Haddad. Aquilo permanece, agravado mesmo. Não sei se Lula — se o governo Lula, ainda que em frente ampla — conseguirá promover a reconexão necessária com o cidadão de cuja mão a atividade política se perdeu. Esse é o tamanho do desafio.