Valor Econômico, n. 4950, 29/02/2020. Brasil, p. A4

Epidemia tem impacto inicial deflacionário sobre o Brasil
Anaïs Fernandes
Ana Conceição
Arícia Martins


Apesar de a depreciação do real em relação ao dólar ter se intensificado nos últimos dias, em meio à aversão generalizada a risco no mundo por causa do coronavírus, especialistas dizem que o efeito líquido desse movimento no Brasil é, ao menos no curto prazo, deflacionário. O repasse cambial é limitado pela queda nos preços em dólar das commodities e pela ociosidade da economia elevada, afirmam.

Caso a doença gere choques de oferta global em prazos mais longos, o saldo pode ser inflacionário. Mas, por enquanto, esse não é o cenário-base dos analistas ouvidos pelo Valor, que, no geral, trabalham com um impacto econômico da epidemia mais concentrado no primeiro trimestre deste ano. Os economistas se mostram mais preocupados com as consequências de uma deterioração da situação política nacional, marcada recentemente pelo embate entre o presidente Jair Bolsonaro e o Congresso.

No ano até 21 de fevereiro (último dia útil antes do Carnaval), o dólar comercial já acumulava alta de 10% ante o real. Ainda assim, a mediana das projeções fechada pelo boletim Focus, do Banco Central, naquele dia apontava corte no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em 2020, de 3,47% nas quatro semanas anteriores para 3,20%. Já a previsão para o câmbio no fim do ano subiu de R$ 4,10 para R$ 4,15. Na sexta-feira, o dólar comercial fechou a R$ 4,48, alta de 12% em 2020.

“O coronavírus tem dois efeitos imediatos. Um é reduzir o preço das commodities em dólar. O outro foi deixar o câmbio mais desvalorizado. Em março e no curto prazo, o entendimento é que vai preponderar a baixa das commodities”, diz Fábio Romão, economista da LCA Consultores. Ele destaca efeitos baixistas para commodities metálicas e energéticas e cita nova redução anunciada pela Petrobras para os valores da gasolina e do diesel nas refinarias, o que reforçaria seu argumento. O economista revisou sua previsão para o IGP-M de março, de 0,40% para 0,17%.

Além da queda no preço das commodities, a MCM Consultores avalia que um choque de oferta tenderia a ficar restrito a certos bens duráveis, caracterizados por demanda elástica (que diminui conforme o preço aumenta) e peso relativamente pequeno no IPCA, como celulares, computadores e eletroeletrônicos.

“Isoladamente, a desvalorização importante do real não tem caráter deflacionário. Mas, quando você olha o fenômeno como um todo, em termos líquidos, a tendência é ser mais deflacionário”, diz Mauro Schneider, economista da MCM. “Sem minimizar o lado da oferta, porque há paralisação de setores na China e pessoas sofrem com isso, mas acreditamos que não compensa o maior efeito sobre a demanda. ”

O choque mais imediato sobre a demanda é nas commodities porque a China é o maior consumidor do mundo, e o Brasil, um importante exportador, mas pode não se restringir aos itens básicos, segundo Schneider. “Naturalmente, a gente perde renda, o que leva o consumo agregado do país a perder força. Depois, tem a incerteza, que coloca um freio sobre investimentos, decisões de consumo e, dependendo da duração do fenômeno, pode afetar a lucratividade das empresas. Então, das commodities, segmento relevante para esses canais de confiança e perda de renda, o efeito vai se espalhando pela economia”, ele explica, ponderando que esse não é o cenário da MCM.

Flávio Serrano, economista-chefe do banco Haitong, diz que a depreciação cambial pode encarecer por aqui produtos primários que tenham preços formados no exterior como grãos e químicos, mas também diz não ver a alta se espalhando pela cesta de produtos dos brasileiros. Serrano pondera que, para haver tal impacto na inflação, o câmbio teria de ficar nos atuais níveis, de R$ 4,50, por mais tempo.

A elevada capacidade ociosa na economia e o desemprego alto também desestimulam reajustes de preços, mesmo que haja alguma pressão no atacado, diz André Braz, coordenador do IPC do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV). Em sua avaliação, a queda dos preços ao produtor, que foi de 0,19% em fevereiro dentro do IGP-M, deve ser revertida no curto prazo, mas a perspectiva para os preços no varejo ainda é bastante favorável.

Romão, da LCA, lembra que, em 2018, quando o dólar subiu 17% ante o real, o IPA-industrial cresceu 9,16%, enquanto a inflação dos bens industriais no varejo, pelo IPCA, avançou apenas 1,12%. Em 2019, esse “gap” diminuiu, mas foi relevante: alta de 7,13% do IPA-industrial ante 1,67% do IPCA de bens industriais. “O espaço de repasse cambial no varejo ainda é limitado”, afirma. E, se o coronavírus afetar de forma mais disseminada projeções para o crescimento brasileiro deste ano, “o espaço para repasse será menor ainda”, afirma.

O cenário de inflação controlada, mesmo com o coronavírus, pode ser abalado se houver deterioração mais forte das perspectivas políticas no Brasil. Para a MCM, caso as recorrentes tensões entre Executivo e Legislativo provoquem a paralisação das reformas, a taxa de câmbio voltará a ser pressionada e, sem a compensação da queda nos preços das commodities, pode ameaçar a ancoragem das expectativas.

Esse não é o cenário-base da MCM, e Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, também diz que, como em outros momentos, espera-se uma conciliação entre os dois Poderes. Passado o efeito do coronavírus, se a situação política piorar, porém, o dólar poderia chegar a R$ 5 “sem dificuldades”, diz. “Neste caso, poderia haver impacto na inflação, e o Banco Central teria que repensar taxa de juros. ”