Valor Econômico, v. 20, n. 4907, 24/12/2019. Política, p. A8

 

Juiz de garantias é mantido em pacote anticrime
 Matheus Schuch
 Luísa Martins


 

O presidente Jair Bolsonaro sancionou ontem o conjunto de mudanças legais que ficou conhecido como “pacote anticrime”, mas não da forma como gostariam de seu ministro mais popular (Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública), a Procuradoria-Geral da República (PGR) e grande parte de seus apoiadores nas redes sociais.

Havia a expectativa de que, entre os 22 vetos aplicados ao texto aprovado pelo Congresso Nacional (e que já havia desidratado a proposta original de Moro), estaria aquele que suprimiria a figura do juiz de garantias, o que acabou por não ocorrer.

O juiz de garantias é um magistrado responsável pela instrução de um processo criminal, a quem cabe deflagrar prisões preventivas, ordenar buscas e apreensões e determinar quebras de sigilo. Porém, ao fim da ação penal, a sentença é dada por outro juiz. A medida, segundo juristas, reduz os riscos de parcialidade.

Na semana passada, Bolsonaro criticou o juiz Flávio Nicolau, da 27ª Vara Criminal do Rio, em razão das buscas em endereços ligados ao senador Flávio Bolsonaro (sem partido), investigado em esquema de corrupção. Nos bastidores do Palácio do Planalto, fala-se que a preocupação do presidente com uma suposta “perseguição” do magistrado a seu filho pode tê-lo motivado a sancionar o juiz de garantias.

As discussões em torno desse instrumento ganharam fôlego depois que o site “The Intercept Brasil” revelou mensagens trocadas entre Moro, então juiz federal de Curitiba, e procuradores da força-tarefa da Operação Lava-Jato. Os diálogos sugeriam uma atuação conjunta, levando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) o reconhecimento da suspeição do ex-magistrado.

Ao tomar conhecimento da lei sancionada, Moro divulgou nota criticando a manutenção desse instituto: disse não saber como vai se dar a aplicação em comarcas onde há apenas um juiz, nem se a mudança valerá para processos pendentes e em tribunais superiores. Depois, no Twitter, escreveu que “não é o projeto dos sonhos” e que sempre foi contrário a algumas inserções feitas pela Câmara no texto originário.

A sanção do texto rendeu ontem uma mobilização contra Bolsonaro nas redes sociais, inclusive por parte de seus próprios apoiadores. A hashtag #BolsonaroTraidor ficou entre as mais comentadas no Twitter. Os internautas consideraram uma “traição” o fato de o presidente ter mantido a emenda que incluiu o juiz de garantias, já que a autoria é de um parlamentar da oposição: o deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ).

Fontes da PGR avaliam que, na lei sancionada, há um trecho que “inviabiliza qualquer investigação sobre organizações criminosas” no país. Trata-se do artigo que permite ao juiz de garantias prorrogar um inquérito uma única vez, por até 15 dias. Se as apurações não forem concluídas neste período, a prisão do investigado é prontamente revogada.

Para procuradores ligados às áreas criminal e de combate à corrupção, o tempo é curto para a apresentação de denúncia, dada a necessidade de diversas diligências cautelares anteriores, como perícias e quebras de sigilo.

Na semana passada, o procurador-geral da República, Augusto Aras, entregou a Bolsonaro nota técnica na qual sugeria veto ao juiz de garantias. Na avaliação do MPF, a nova lei não traz ressalvas sobre o papel desse magistrado nos processos atualmente em curso. Sendo assim, juízes que atuaram na Lava-Jato poderão ser afastados por “impedimento legal superveniente”, sob pena de anular ações e atrasar a resolução de investigações.

Partidos como o Novo e o Podemos estudam acionar o STF pela inconstitucionalidade da medida. Em princípio, o argumento será o de que o juiz de garantias muda a estrutura organizacional do Poder Judiciário, o que só poderia ser efetivado por iniciativa do próprio Judiciário.

A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) também manifestaram preocupações, principalmente em virtude dos custos e das dificuldades de operacionalização - já que seria necessário criar novos cargos em até 30 dias, prazo para que a lei entre em vigor.

Em relação a outros itens do pacote, Bolsonaro vetou o aumento das penas para crimes contra a honra cometidos na internet e para homicídio cometido com uso de armas de fogo de uso restrito. Em mensagem enviada ao Congresso, disse que os dispositivos contrariavam o interesse público ou eram inconstitucionais. Os vetos ainda podem ser derrubados no Legislativo.