Valor Econômico, v. 20, n. 4902, 17/12/2019. Internacional, p. A13
 

Quem fracassa são os governos, não as reuniões do clima
Daniela Chiaretti 

 

É inegável que a conferência do clima mais longa da história, a CoP 25, em Madri, produziu frustrações generalizadas. Não entregou os mercados de carbono, nem mais financiamento ou metas de redução de gases-estufa mais fortes. Mas reduzir este processo a um fracasso é também fazer o jogo daqueles governos que negam que a mudança climática tenha interferência humana e governam segundo o calor do próprio umbigo. É preciso quebrar esta roda.

O que existe hoje é um círculo em que as conferências da ONU fracassam, a população não entende, vota em governos que colocam mais combustíveis fósseis para queimar, as emissões aumentam, e as conferências da ONU fracassam.

O multilateralismo é assim, vence o menor denominador comum. Sem as regras destes mega-encontros entre delegados de 200 países, a geopolítica climática é a do faroeste, já dizia o embaixador Andre Correa do Lago, negociador brasileiro de alguns anos atrás.

A continuar como está, a mudança climática nos matará a todos, mas os pobres irão primeiro. A frase, invertida, foi dita por António Guterres, secretário-geral das ONU, na quinta-feira, em Madri. Ele disse aos líderes que falhar no combate à mudança do clima permitiria apenas a “sobrevivência dos mais ricos”.

Guterres tem razão no vaticínio. Com a natureza, disse ele mesmo, não se negocia. A passagem de um ciclone pelo sul da África em março é um trágico exemplo. Idai destruiu casas, hospitais, estradas e escolas em Madagascar, Moçambique, Zimbábue e Malaui. Matou num golpe mais de 1.300 pessoas.

A CoP de Madri, é verdade, não entregou as regras para os mercados de carbono. É um processo complicadíssimo e muito técnico. Imagine-se a dificuldade de se fazer algo onde países e empresas do mundo todo podem transacionar emissões de gases-estufa. Trata-se de colocar os mercados no processo, de modo a que financiem a transição econômica para um mundo de baixo carbono.

Isso tem que ser feito de maneira a garantir a integridade ambiental, evitando-se, a todo custo, uma dupla contagem de emissões - pelo país que comprou a transação e pelo país que vendeu. Este erro contábil arruinaria esforços de se proteger o clima do planeta.

Se essas regras forem bem feitas, um percentual do que será transacionado pode ir para fundos que ajudem os países mais pobres a enfrentar secas, inundações, tufões. Esses recursos poderiam evitar que milhões de pessoas se transformem em migrantes climáticos.

Carbono será a commoditie do futuro. A Europa tem, desde 2005, um robusto mercado de carbono. Atinge 11 mil instalações industriais dos setores que mais poluem - energia, aviação, indústrias de cimento. A tonelada de CO2 é negociada a € 24 no maior mercado de carbono do mundo. Com o projeto do New Deal Verde europeu, o bloco precisará negociar  mais carbono para conseguir, em 2050, a neutralidade das suas emissões.

Em 2020 será  a vez da China, que há anos vêm testando como fazer o seu próprio mercado doméstico de carbono em nove províncias, lançar sua investida neste campo. Como tudo o que a China faz, será uma iniciativa gigante.

Criar regras para tudo isso em escala global não é tarefa fácil. O mundo não tem nada parecido com um mercado global de emissões de carbono. Exigir que diplomatas entendam essas nuances todas, prevejam falhas e evitem injustiças em alguns dias de negociação não é razoável. É preciso amadurecer as regras, discutir internamente, envolver setores  da sociedade. E fazer isso logo, porque, queira ou não o Brasil, o mundo está em emergência climática.

É angustiante ver que esta é uma pauta entendida como ideológica por governos de direita. Em parte, se compreende. Estes governos não querem discutir direitos de índios, de mulheres, de humanos.

Povos indígenas e comunidades excluídas no mundo tentam ser incluídos em uma discussão do futuro, que pode afetar seus direitos. Vão às CoPs em número cada vez maior. A conferência de Madri conseguiu, por exemplo, criar um caminho para um Plano de Ação de Gênero. Trata-se de, em cinco anos de ações, desenvolver lideranças entre mulheres de países  em desenvolvimento. Governos nacionalistas, já se sabe, detestam este tipo de abordagem.

Os americanos, contudo, são mais espertos. O presidente Donald Trump mandou uma delegação júnior para a CoP de Madri. Já anunciou que quer sair do Acordo de Paris, e que “America First”, aquela coisa toda. Mas seus negociadores foram ativos no debate do artigo 6, o das regras de mercado. Por que, se vão sair do jogo? Porque podem querer voltar para um tabuleiro onde estarão Europa e China, com suas indústrias. Os EUA podem sair em novembro do Acordo de Paris, mas podem querer voltar rápido. Melhor estar em campo quando os outros tratam de negociar as regras.

O grande desastre das CoPs de clima está em outro lugar, além da óbvia falta de urgência e compromisso dos governos, cada qual defendendo seus interesses. Esta transformação vai ocorrer de qualquer jeito, quer os políticos queiram ou não, já disse a adolescente Greta Thunberg.

A mudança já acontece no mundo empresarial mais avançado e moderno. Mobiliza milhões de jovens nas ruas. Está por trás da escolha de consumidores europeus. Pode provocar boicotes de produtos e países. Pode justificar tarifas de fronteira em questão de tempo.

A pauta climática não pode ser de direita ou de esquerda. Mata coalas e asfixia gente na Austrália, uma das economias mais ricas do mundo, mesmo que o premiê conservador Scott Morrison seja um dos refratários a esta agenda. Agora que a fumaça escurece Sidney e o fogo queima fazendas, está sendo pressionado a fazer algo. Os incêndios ali não são provocados pelo homem, como na Amazônia. Acontecem sempre - mas estão fora de controle porque a seca é cada vez mais forte. Ser negacionista climático neste contexto de emergência é negar a realidade.

A maior tragédia das conferências de clima das Nações Unidas está no que pensam, no final, os motoristas de táxi, as cozinheiras, os garçons, os caixas de supermercado, os vendedores de sorvete, os fiscais de trânsito, os agricultores familiares. A maioria acredita que milhares de pessoas se reúnem durante 15 dias em conferências do clima ao redor  do mundo e não produzem nada no final porque são farsantes. É a análise das ONGs, dos cientistas e da imprensa, mas é uma meia-verdade.

 

O processo anda um pouco mais, a cada rodada. O discurso do fracasso dá combustível para que presidentes como Jair Bolsonaro e ministros como Ricardo Salles digam depois: “Estas conferências? Não servem para nada”.

A ideologia vence, no fim. Os eleitores, sem entender o que se passa, votam em governos que investirão em mais usinas de carvão, em políticas omissas que matam de poluição quem vive nas cidades, em mensagens que estimulam que se desmate pois “os outros fizeram assim”.

O maior drama deste processo é não conseguir fazer com que as pessoas entendam que se trata da vida delas, hoje. E da vida dos seus filhos, amanhã. É preciso reverter esta roda. O mundo tem 10 anos para isso. A próxima década começa em 15 dias.