Valor Econômico, v.20, n. 4865, 24/10/2019. Legislação p.E2

 

Investigações internas nas empresas nacionais


A maioria das investigações internas realizadas no Brasil é uma reprodução irrefletida do modelo norte-americano


Por Daniel Zaclis

 

Na última década, no mundo e também no Brasil, houve uma escalada repressiva das corporações. Há um cenário novo de transparência, de compliance e de combate à corrupção. Por exemplo, a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13), com a possibilidade de aplicação de multas milionárias, fez com que as corporações se estruturassem para criar mecanismos de avaliação e controle de riscos futuros. A conivência com práticas ilícitas pode custar muito caro.

Nesse contexto, as investigações internas corporativas ganharam relevo. Em vez de aguardar passivamente que o Ministério Público ou a AGU atestem a fraude praticada no seio da corporação, a empresa conduz, por iniciativa própria, a investigação interna. O material coletado é de utilidade tanto à defesa da empresa, como aos órgãos do Estado, que poderão utilizá-lo para esclarecer os eventuais delitos.

As investigações internas corporativas incluem normalmente análise de documentos e de entrevistas com funcionários, ex-funcionários, gestores, fornecedores. Mas, em tese, elas podem se valer de qualquer meio legítimo capaz de oferecer informações que auxiliem na apuração dos fatos.

Idealizada nos Estados Unidos na década de 70, a investigação interna permite que a empresa tenha um conhecimento amplo do fato, possibilitando que ela tome as melhores decisões, tanto em termos legais, como de negócio e imagem, avaliando, por exemplo, a oportunidade de fazer um acordo de leniência ou a necessidade de demitir um funcionário.

Para os órgãos repressores, as investigações corporativas, quando bem conduzidas, permitem que os escassos recursos públicos sejam destinados a outras apurações. Ou seja, os órgãos públicos olham com simpatia investigações internas bem feitas.

Há de se ter, contudo, cautela. Nascida em um sistema jurídico estrangeiro, a investigação corporativa deve ser corretamente incorporada à nossa realidade, fazendo os ajustes necessários. E aqui está um problema: a prática mostra que isso não vem ocorrendo.

Na realidade, a maioria das investigações internas realizadas no Brasil é uma reprodução irrefletida do modelo norte-americano. Por mais que os EUA detenham o know-how na investigação corporativa, não se pode fechar os olhos para o fato de que lá vigora uma estrutura de apuração de ilícitos completamente diferente da do Brasil.

No Brasil, por exemplo, o direito ao silêncio de alguém sob investigação é entendido de forma muito ampla. Valer-se, numa entrevista realizada em investigação interna, dos mesmos parâmetros da obrigação de dizer a verdade daqueles empregados nos Estados Unidos é dar margem para a nulidade de todo o trabalho, já que, agindo assim, muito provavelmente haverá desrespeito a direitos e garantias constitucionais.

Outra diferença refere-se às regras de confidencialidade a que estão submetidos os advogados que conduzem as investigações. Ignorar tal disparidade, como vem ocorrendo, fragiliza o grande benefício de ter um advogado por trás dessas apurações, que é o sigilo das informações produzidas.

Nos tribunais brasileiros, ainda não há uma jurisprudência consolidada sobre a investigação interna. É possível, no entanto, vislumbrar critérios e princípios que devem nortear esse trabalho. Já existem algumas decisões que auxiliam nesse caminho. Em 2017, por exemplo, a Justiça obrigou uma grande empresa brasileira do ramo de celulose a refazer a investigação interna, sob o argumento de que faltou independência na apuração das fraudes. Neste caso, o Ministério Público Federal também se recusou a utilizar os elementos de prova produzidos pela investigação corporativa.

O cuidado com as investigações internas não se refere, no entanto, apenas à sua própria eficácia. As informações coletadas podem ser utilizadas num eventual processo penal, o que recomenda especial atenção e critério.

Sendo muito útil e até mesmo necessário, o modelo norte-americano de investigações internas corporativas é apenas uma moldura. É um erro tomá-lo como um quadro acabado. A pintura há de ser feita aqui, respeitando o Direito brasileiro. O combate aos ilícitos empresariais no Brasil, assunto de especial relevância tanto para as empresas como para o ambiente de negócios, só tem a ganhar com esse cuidado.