Valor Econômico, v. 20, n. 4902, 17/12/2019. Empresas, p. B6
 

Maior desigualdade é risco da inteligência artificial
João Rosa 

 

O rápido avanço da inteligência artificial (IA) costuma provocar calafrios, com muita gente pensando na possibilidade de as máquinas escravizarem ou destruírem a humanidade no futuro, mas para Kai-Fu Lee essas preocupações estão inspiradas na ficção científica e não representam risco até onde a tecnologia atual permite antever. As ameaças reais, diz o investidor e escritor chinês, são de outra natureza: desemprego em massa e aumento expressivo da desigualdade social.

“Mesmo sem a IA, a desigualdade já uma questão importante porque traz instabilidade e rupturas sociais”, diz Kai-Fu, presidente executivo da empresa de investimento Sinovation Ventures e ex-executivo da área de inovação de gigantes como Google, Microsoft e Apple. O que a inteligência artificial fará é exacerbar o abismo entre ricos e pobres, ao proporcionar mais riqueza às companhias e pessoas que se mostrarem hábeis em extrair valor das novas tendências.

Kai-Fu veio ao Brasil para lançar o livro “Inteligência Artificial” (Globo Livros), cujo subtítulo dá uma dimensão da abrangência das implicações: “Como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamentos, trabalhamos e vivemos”.

Dois conjuntos de medidas serão necessárias para evitar ou retardar o aumento da desigualdade, diz Kai-Fu, que falou ao Valor, ontem, antes de um encontro que reuniu cerca de 100 convidados na sede da TV Globo em São Paulo. O primeiro é estabelecer modelos como o de renda mínima universal ou outras métricas capazes de ajudar quem se encontra em desvantagem econômica. O segundo é dar treinamento profissional. A IA vai destruir muitos empregos e criar outros, mas as novas vagas exigirão mais capacidade técnica.

O autor, que nasceu em Taiwan, cresceu nos Estados Unidos e hoje mora em Pequim é considerado uma das vozes mais originais do cenário global de tecnologia. Com o domínio das empresas americanas de internet como Google, Facebook e Amazon, o entendimento que se tem dos fenômenos relacionados à internet costuma ser ditado pela perspectiva do Vale do Silício, onde se concentra a inovação nos EUA. Kai-Fu oferece outra visão - a da China.

Empreendedores, investidores e acadêmicos têm tentado replicar as condições do Vale do Silício em várias partes do mundo, mas isso é impossível, diz. “O Vale do Silício é o modelo ideal para inovações que causam ruptura e reúnem pessoas brilhantes que fazem coisas inimagináveis, como o iPhone, a [montadora de carros elétricos] Tesla e a [empresa de transporte espacial] SpaceX. Mas não dá para copia-lo.”

O modelo chinês, “bem pé no chão”, é diferente. “É sobre executar a inovação tentando descobrir o que as pessoas querem. E usar dados para chegar a isso”. Com a conexão crescente das pessoas, intensos fluxos de informação agora alimentam modelos de inteligência artificial, que se guiam pelo comportamento dos usuários. “Não é mais necessário lançar um produto perfeito. Você pode lançar um bom produto, baseado na interação com os dados.” O produto ficará melhor à medida que mais informações forem obtidas sobre o gosto do consumidor.

Na era da internet, diz Kai-Fu, “mesmo monopólios podem não ser uma coisa ruim. Isso se o monopólio oferecer um superaplicativo incrivelmente conveniente para as pessoas”. Como exemplo, ele cita o WeChat. A competição em torno dos superaplicativos - que reúnem inúmeras funções em um único software fácil de usar - mostra as características do modelo chinês, orientado a resultados, capaz de aprender à medida que evolui, é rápido e interativo. “É um modelo que comprovadamente pode ser copiado.”

EUA e China estão mais bem-posicionados para liderar o mundo da inteligência artificial, mas há muitas chances para países como o Brasil, diz Kai-Fu. O país tem população homogênea e grande o bastante para desenvolver seu próprio ecossistema de empreendedorismo e conceber aplicações próprias de IA. Em outros mercados isso não é possível porque a porque a população é pequena ou o país está concentrado demais em atender ao mercado externo.

Além disso, o Brasil é “suficientemente diferente”, diz o investidor chinês, de 58 anos recém-completados. Uma dessas particularidades é a língua. O idioma torna mais difícil a companhias americanas ou chinesas abordar o público local. “Não é impossível, mas é mais difícil”, diz, o que abre chances para que mais aplicações de inteligência artificial sejam criadas localmente. “A maior parte dos elementos indica uma direção positiva. Não acho que seja possível superar os EUA ou a China, mas o Brasil com certeza pode figurar entre os dez maiores no movimento de entender, aplicar e obter lucro com a inteligência artificial.”

Há, no entanto, lição de casa a fazer. “Acho que a falta de engenheiros é uma questão”, afirma Kai-Fu. O número de engenheiros brasileiros voltados às ciências da computação representa um décimo do contingente existente na China e nos EUA. “Então, se há 50 engenheiros por mil pessoas nesses dois países, no Brasil não chega a 5. É preciso dar mais ênfase à engenharia.”