Valor Econômico, v.20, n. 4866, 25/10/2019. Opinião p.A16

 

Petróleo, benção ou maldição?


Poderia ser criado um fundo soberano a exemplo dos conhecidos fundos pioneiramente criados pela Noruega


Por Carlos Von Doellinger

Eis que ponho diante de ti a benção ou a maldição...” Deuteronômio 11:26-32, Bíblia Sagrada.

Um famoso “best-seller” publicado no Brasil algo tardiamente em 2015, de autoria do escritor Michael Ross, cujo título em português é “A Maldição do Petróleo” (The Oil Curse, no original) causou grande perplexidade, eis que contrariava o juízo comum, até então presente, de que essa riqueza mineral era uma benção da natureza para alguns países afortunados.

O Brasil, como a maioria dos países importadores, sofreu muito em passado recente com a decisão da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), de impor um verdadeiro “choque” de fortes aumentos de preços do barril de petróleo decidida pelo cartel petrolífero em 1973 e anos subsequentes.

Sobrevieram crises e penosos ajustes àquela nova realidade, mas havia pouco a fazer, tendo em vista o controle da oferta global por um reduzido grupo de países. Ao longo dos anos os ajustes permitiram redução do consumo e aumento de produção, de tal forma que hoje a “commodity” tornou-se muito mais acessível e de certa forma perdeu grande parte do “glamour” de ser uma benção.

Todavia, conquanto deixasse de ser uma benção, porque afinal seria maldição? Essa tese foi apresentada no volumoso tomo de Ross, contendo uma pletora de dados, constatações e argumentos. Pareceu bastante convincente. Na verdade, o que o livro mostrava é que o precioso combustível fóssil poderia ser benção ou maldição, a depender das escolhas e das circunstâncias da economia de cada país. Sintetizando ao máximo, poderia ser maldição se a quase totalidade da atividade produtiva e das exportações do país se concentrassem naquele único produto, o que tendia a valorizar o câmbio e inibir a competitividade de todos os demais setores da economia.

Se hoje constatamos que um pequeno emirado árabe como o Catar, que produz mais de US$ 6 milhões per capita do óleo cru ou refinado, possui a estonteante renda per capita de US$ 102.600, também verificamos que Venezuela, que detém a maior reserva mundial do óleo, afunda na miséria mais abjeta de uma depressão econômica que parece nunca chegar ao “fundo do poço”.

E não é um caso isolado, embora seja o mais dramático. Na lista dos 10 maiores produtores encontramos países ainda muito pobres, como Turcomenistão, com desemprego de mais de 60% de sua população, Líbia, em crise permanente e guerra civil infindável, Iraque, igualmente miserável e conflagrado.

Outros grandes produtores, como os africanos Nigéria, Argélia e Angola, não conseguiram vencer a inércia que os aprisiona no “círculo vicioso da pobreza”.

Mas e o Brasil? Onde iremos nos situar nessa escolha terrível entre benção ou maldição? Afinal, somos o nono maior produtor, e provavelmente subiremos muito nessa classificação nos próximos anos, dadas as recentes reservas submarinas do “pré-sal”. Avaliações recentes dão conta que apenas com o leilão do excedente da cessão onerosa, previsto para o próximo mês de novembro, teremos R$ 106,6 bilhões a serem repartidos entre Petrobras, governo federal e demais entes federados. E podemos ter quatro ou cinco vezes mais nos próximos anos.

Claro está que o Brasil está “anos-luz” de distância de ser um monoprodutor de petróleo. Possui uma economia “ainda” muito diversificada, embora com seu setor manufatureiro insistindo em encolher para algo como 11% do PIB (mais de 25% nos anos 70).

Porém, a ansiedade que se estabeleceu com a partilha desses recursos iniciais, especialmente com a disputa entre os entes federativos, é preocupante, e já se sabe que a efetiva utilização dessas benesses extemporâneas, que entraram no contexto do Pacto Federativo, serão submetidas a condicionalidades estritas.

Por exemplo, deverão ser prioritariamente utilizadas em casos específicos de acertos de débitos e notadamente para investimentos. A lógica básica dessa restrição é a de que seria recursos do tipo “once for all”, e portanto caberiam ser utilizados em despesas que resultassem em retornos futuros, como investimentos em infraestrutura, por exemplo. Ou para redução da dívida pública. Assim, não deveriam inibir ações de ajustes fiscais. Pelo contrário, seriam complementares ao ajuste.

Mas fica sempre a dúvida: e se as previsões mais otimistas do Brasil de se transformar em grande produtor mundial, de petróleo e gás, a ponto até de ser um grande exportador, se confirmarem? Não correria o risco de sucumbir à maldição do petróleo, pelas razões já mencionadas anteriormente?

Isso não ocorreu com países de economia já bem estabelecida, antes mesmo da presença mais significativa do óleo cru, como nos casos do Canadá e Noruega, grandes produtores mundiais. Mas trata-se de países com instituições muito fortes e economias altamente produtivas.

E no Brasil, o que passaria? Não é uma questão precipitada ou irrelevante, como poderia parecer às mentes mais pragmáticas e imediatistas. E nem sempre o senso comum poderia ser nosso porto seguro diante da tentação.

Por outro lado, essa possível pletora de súbita riqueza precisaria ser utilizada nas próximas duas décadas, pois já se sabe que o progresso tecnológico de novas fontes de energia limpa e barata, como a eólica e solar, irão dominar a cena, talvez até mais cedo do que se imagina.

Ou talvez ainda melhor que isso; poderia ser usada em um fundo de desenvolvimento econômico e social, a exemplo dos conhecidos “fundos soberanos” pioneiramente criados pela Noruega, com a riqueza petrolífera do Mar do Norte, e seguido por diversos outros países grandes produtores de petróleo, inclusive Arábia Saudita. Um fundo desse tipo seria perene se apenas os rendimentos fossem utilizados em gastos correntes e/ou parcelas limitadas do principal em formação de capital.

Cabe, portanto, o alerta. O país precisa se preparar para a utilização racional dessa benção da natureza e não permitir que se transforme em maldição.