Valor Econômico, v. 20, n. 4901, 14/12/2019. Opinião, p. A17
 

Atacando a desigualdade pelo meio
Dani Rodrik

 

A desigualdade tem ganhado uma relevância na agenda atual dos políticos que há muito não se via. Reações políticas e sociais contra a ordem econômica estabelecida têm servido de combustível para a ascensão de movimentos populistas e de protestos de rua pelo mundo, do Chile à França, de forma que a questão agora se tornou prioridade premente para políticos de todos os espectros. Se antes os economistas costumavam afligir-se com os efeitos adversos das políticas igualitárias sobre os incentivos aos mercados ou o equilíbrio fiscal, agora temem que uma iniquidade grande demais alimente comportamentos monopolistas e corroa o crescimento da economia e o avanço tecnológico.

A boa notícia é que não carecemos de ferramentas econômicas para enfrentar as crescentes diferenças sociais. Em recente conferência que organizei com Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), um grupo de economistas apresentou uma ampla série de propostas, abrangendo as três dimensões de uma economia: a pré-produção, a produção e a pós-produção.

São importantes intervenções na pré-produção a educação, a saúde e as políticas financeiras que regem os recursos por meio dos quais as pessoas entram nos mercados. Na categoria pós-produção, estão as políticas de transferência e de impostos para redistribuir a renda no mercado.

A categoria restante, a das intervenções na fase da produção, talvez seja a que conta com as ideias mais pioneiras. As políticas nesta categoria têm como alvo direto o emprego, investimento e as decisões de inovação das empresas, agindo por meio da definição dos preços relativos, do ambiente de negociação entre os que aspiram a entrar na produção (trabalhadores e fornecedores, em particular) e do contexto das leis. São exemplos dessas políticas o salário mínimo, as políticas antitruste, as leis sobre relações trabalhistas, as políticas inovadoras de fomento ao emprego, as políticas específicas locais e outros tipos de políticas industriais.

Algumas políticas - como as intervenções na infância, os programas de desenvolvimento da força de trabalho e o financiamento público à educação terciária - já foram bastante testadas e existem evidências de que funcionam bem. Outras, como o imposto sobre a riqueza, continuam polêmicas ou, da mesma forma que no caso das políticas específicas locais, são acompanhadas de incertezas consideráveis sobre qual seria seu melhor formato. Ainda assim, está cada vez mais disseminada a opinião de que ter alguma experimentação nessa área seria algo desejável e necessário.

O apoio do governo à inovação precisa ser direcionado a tecnologias explicitamente favoráveis ao emprego. É possível vislumbrar um regime inteiramente novo de colaboração público-privada na empreitada de construir uma economia de bons empregos.

Há uma questão fundamental, porém, que vem recebendo pouca atenção: que faixa de desigualdade essas medidas deveriam enfrentar? Políticas para combater a iniquidade normalmente têm foco na redução da renda no topo, como é o caso da tributação progressiva da renda, ou na elevação da renda dos mais pobres, por exemplo, com a distribuição de dinheiro para as famílias abaixo da linha da pobreza.

Tais políticas deveriam ser expandidas, especialmente em um país como os Estados Unidos, onde os esforços atuais são insuficientes. A desigualdade de hoje, contudo, também pede uma abordagem diferente, que dê atenção às inseguranças econômicas e às ansiedades dos grupos que estão na faixa média da distribuição de renda. Nossas democracias apenas vão conseguir minimizar as ameaças dos conflitos sociais, do nativismo e do autoritarismo se melhorarem o bem-estar econômico e o status social dos trabalhadores das classes média e média baixa.

A necessidade de tal abordagem está refletida no fato de que os indicadores convencionais de iniquidade são um péssimo termômetro do descontentamento político e social nas democracias. Na França, por exemplo, a extrema direita ganhou grande terreno e os protestos sociais (dos “coletes amarelos”) têm sido generalizados. A desigualdade no país, entretanto, não aumentou muito (em termos do coeficiente Gini ou da proporção das pessoas de alta renda), em contraste com o observado na maioria das outras democracias ricas. A eleição do presidente dos EUA, Donald Trump, em 2016, não teve raízes nos Estados mais pobres, mas naqueles em que a criação de empregos e as oportunidades econômicas mais deixavam a desejar em relação ao resto.

Claramente, o descontentamento deriva de algum tipo diferente de iniquidade, cujo maior impacto se dá na faixa média da distribuição de renda. Uma parte fundamental do problema é o desaparecimento (e a relativa escassez) de empregos bons e estáveis.

A desindustrialização devastou muitos centros produtivos, um processo agravado pela globalização econômica e pela competição de países como a China. As mudanças tecnológicas tiveram consequências particularmente adversas para os empregos na faixa média da distribuição de qualificações profissionais, afetando milhões de trabalhadores de escritórios, de vendas e da indústria. O declínio de poder dos sindicatos e as políticas para ampliar a “flexibilidade” dos mercados de trabalho também contribuíram para a casualização do emprego, a substituição do emprego permanente pelo temporário.

Outra parte da história, não refletida nos indicadores convencionais de desigualdade, é a crescente separação geográfica, social e cultural entre grandes segmentos das elites e das classes trabalhadoras. Isso está refletido de forma mais imediata na segmentação espacial entre os centros urbanos cosmopolitas, prósperos, e as comunidades rurais, cidades menores e áreas urbanas afastadas, retardatárias.

Essas diferenças espaciais provocam, e ao mesmo tempo são reforçadas, por divisões sociais mais amplas. As elites metropolitanas profissionais estão inseridas em redes globais e são altamente móveis. Isso torna sua influência sobre os governos ainda mais forte e também os distância dos valores e prioridades de seus compatriotas menos afortunados, que passam a ficar alienados e ressentidos com um sistema político-econômico que aparentemente não funciona nem se importa com eles. A desigualdade se manifesta na forma de uma sensação de perda de dignidade e de status social por parte dos trabalhadores com menor nível de ensino e outros “excluídos”.

Economistas vêm admitindo que combater a resultante polarização depende em grande parte de revigorar a capacidade da economia de gerar bons empregos. Também não sofremos de falta de ideias nesse front. Instituições do mercado de trabalho e regras de comércio exterior precisam ser reformadas para fortalecer o poder de negociação do trabalho diante  dos empregadores com mobilidade mundial. As próprias firmas precisam assumir maiores responsabilidades para com suas comunidades locais, funcionários e fornecedores. O apoio governamental à inovação precisa ser direcionado a tecnologias explicitamente favoráveis ao emprego. É possível vislumbrar um regime inteiramente novo de colaboração público-privada na empreitada de construir uma economia de bons empregos.

Muitas dessas ideias ainda não estão testadas. Mas novos desafios exigem novas soluções. Se não estivermos preparados para sermos ousados e criativos na tarefa de criar economias inclusivas, vamos ceder terreno aos falcões das ideias antigas e desastrosas já testadas.