Valor Econômico, v. 20, n. 4902, 17/12/2019. Brasil, p. A2
 

Quando incentivos fiscais não bastam
 Marli Olmos

 

Em meados dos anos 1990, o governo de Fernando Henrique Cardoso lançou um programa de incentivos fiscais que marcou a descentralização da indústria automobilística no país. Junto com os benefícios federais surgiu uma guerra fiscal entre Estados, e, em pouco tempo, as linhas de montagem que até então se concentravam basicamente em São Paulo e Minas Gerais se espalharam pelo Sul, pelo Nordeste e pelo Centro-Oeste.

Essa descentralização mudou completamente o mapa da indústria automobilística no país. Levou atividade industrial e empregos qualificados a regiões distantes, a lugares que até então só conheciam o trabalho da lavoura. Em Goiás, CPI investiga concessões tributárias.

Os ganhos fiscais obtidos nessas regiões permitiram às montadoras compensar a desvantagem logística das longas distâncias que as separam de grandes fornecedores de componentes e dos maiores mercados consumidores de automóveis.

Em pouco tempo, a produtividade alcançada em fábricas instaladas no Nordeste começou a provocar inveja a linhas veteranas do Sudeste.

É por isso que causou surpresa para muitos quando, na semana passada, o presidente da Ford na América do Sul, Lyle Watters, revelou que começou a negociar com empregados e fornecedores da fábrica da montadora em Camaçari, na Bahia, metas de redução de custos. Isso inclui, principalmente, reduzir benefícios trabalhistas como o valor da participação nos resultados.

Watters levou até a fábrica baiana uma fórmula praticamente igual à usada no início do ano por uma de suas concorrentes, a General Motors. O tom do discurso da Ford foi menos ameaçador do que o da GM. Mas, em ambos os casos, futuros investimentos foram atrelados à necessidade de baixar custos.

Quando no início do ano anunciou o fechamento da sua antiga fábrica de São Bernardo do Campo, no ABC, parecia que a Ford havia optado por concentrar a produção de veículos onde ainda desfruta de incentivos fiscais, na Bahia. Acontece que o programa que prorrogou de 2020 para 2025 o término do regime de benefícios fiscais para montadoras instaladas no Nordeste prevê uma redução no percentual de incentivos federais nessa região a partir de 2021.

Vale lembrar que essa prorrogação, feita por meio de decreto assinado pelo ex-presidente Michel Temer, no fim do mandato, há um ano, foi a quarta mudança na data final de uso de créditos tributários. Inicialmente, a lei previa o fim do incentivo em 2010. O prazo foi, depois, estendido para 2015, 2020 e agora 2025.

Um forte trabalho de lobby de empresas e de deputados fez com que, ao longo dos últimos anos, o tamanho dos incentivos fosse ajustado conforme as desvantagens ou vantagens de cada região. O consultor Ricardo Bastos, da RB2, lembra que o Centro-Oeste, por exemplo, ficou fora da última prorrogação de benefícios por estar mais próximo do Sudeste do que as fábricas instaladas no Nordeste.

Há poucos dias, o empresário Carlos Alberto Oliveira Andrade, proprietário do grupo Caoa, disse ao Valor que espera que as vantagens tributárias para o Centro-Oeste sejam estendidas. Fica em Anápolis, município no interior de Goiás, a maior fábrica de veículos do grupo. Ali são produzidos modelos da marca coreana Hyundai e da chinesa Chery. Oliveira Andrade andou sondando a compra da Ford no ABC paulista, o que poderia ser entendido como ameaça de deslocamento para o Sudeste caso a fábrica goiana perca vantagens fiscais.

Mas, se na esfera federal a concessão de incentivos não é a mesma de anos atrás, no lado dos Estados a situação se complica com a crise nas contas públicas. Antes mesmo de tomar posse como governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM) propôs uma revisão de benefícios fiscais em seu Estado. Na Assembleia Legislativa de Goiás foi instaurada até uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para analisar concessões em impostos. Os empresários têm sido chamados para depor. Muitos escapam das sessões com a ajuda de liminares.

Questionamentos em relação aos programas de vantagens fiscais surgem por todo o lado. Quando a Ford anunciou o fechamento da fábrica em São Bernardo, em fevereiro, houve uma reação imediata de membros do Ministério da Fazenda, indagando o fato de a montadora suspender a produção em um Estado enquanto se beneficia de redução de impostos em outro.  Quando o programa de incentivos do Nordeste foi criado houve comprometimento das empresas de não transferir linhas para as regiões beneficiadas.

A polêmica mobilizou membros das bancadas de deputados do Nordeste num momento delicado, em que assuntos importantes como a reforma da Previdência estavam em pauta. O assunto parou por aí.

As histórias de investimentos que nasceram de incentivos fiscais estão por todos os lados. E as artimanhas para obtê-los extrapolam a criatividade desse setor. Para credenciar-se ao programa oferecido no Nordeste, o grupo Fiat Chrysler adquiriu uma antiga fábrica de peças (chicotes elétricos) em Pernambuco.

Há várias razões, no entanto, para crer que um novo cenário começa a expor a fragilidade dos programas de incentivo fiscal. Basta ver que as negociações para pressionar operários a aceitar revisões de contrato de trabalho se estendem de Norte a Sul. Já envolvem metalúrgicos paulistas, gaúchos e baianos.

Além disso, as montadoras percebem, hoje, que não basta mover-se ao sabor de tratamentos tributários especiais, como fizeram ao longo de anos. Não tem sido fácil convencer as matrizes dessas companhias a liberar programas de investimentos em regiões não envolvidas nos gastos que esse setor elegeu como mais importantes: desenvolvimento de novas tecnologias, energias alternativas, conectividade e direção autônoma.

A era dos incentivos a fabricantes de veículos no Brasil não acabou. O mais recente programa, o Rota 2030, também assinado a menos de dois meses de mudança de governo, premia com redução de impostos os que investirem em pesquisa e desenvolvimento. Essa indústria tem perdido, no entanto, muitos dos mimos do passado e sabe que para manter-se viva hoje não basta bater à porta de governos.