O Globo, n. 32637, 15/12/2022. Política, p. 4

Mecanismo "obscuro"

Mariana Muniz
Bruno Góes
Fernanda Trisotto


Em um revés para o Congresso, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, votou ontem para derrubar o modelo atual de distribuição das emendas de relator, usadas por deputados e senadores para enviar recursos a seus redutos eleitorais sem serem identificados. Segundo ela, o mecanismo, que ficou conhecido como orçamento secreto, permite um “desvio de finalidade” do uso do dinheiro público e “desequilibra o processo democrático” ao beneficiar apenas alguns políticos. A análise das ações que questionam a legalidade do orçamento secreto será retomada hoje, com o voto do ministro André Mendonça.

Embora o julgamento ainda não tenha terminado, as duras críticas da ministra durante a sessão, que citou uma série de escândalos de corrupção para embasar seu voto, desagradaram a parlamentares, que se queixaram da abrangência e do duro teor do posicionamento. Aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) já falam em, por exemplo, não votar pautas relativas ao orçamento do Judiciário.

À noite, poucas horas depois do voto de Rosa, o relator-geral do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI) divulgou que uma sessão do Congresso foi marcada para a manhã de hoje para votar o projeto de resolução, elaborado pela cúpula do Legislativo, que cria novas regras para a divisão das verbas de emendas de relator, como a partilha de forma proporcional entre os partidos e a exigência de uso de 50% em saúde, educação e assistência social.

Essa resolução havia sido uma última tentativa de Lira e do Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), de convencer o Supremo a manter as emendas de relator. Ao iniciar seu voto que considerou o instrumento inconstitucional,Rosa chamou a iniciativa de “louvável”, mas ignorou o apelo e afirmou que ele não interferiria no caso.

Distribuição desigual

Criado no governo de Jair Bolsonaro, o orçamento secreto tem sido utilizado pelo Palácio do Planalto para contemplar parlamentares aliados em troca de apoio no Congresso, numa espécie de “toma lá dá cá”. Neste formato, todas as indicações de recursos para obras e serviços aparecem em nome do relator do Orçamento, embora tenham sido destinadas por deputados e senadores. Diferentemente das outras formas de repasses, como as emendas individuais, não há critérios objetivos para distribuição igualitária entre congressistas, abrindo margem para a barganha política.

Ao longo de seu voto, Rosa apontou a falta de transparência tanto de quem indica quanto do destino do dinheiro público, que “acha-se recoberto por um manto de névoas”. Ela ainda defendeu a realocação das verbas de emendas de relator para outros projetos de ministérios.

Rosa citou também escândalos como o dos Anões do Orçamento e da Máfia das Sanguessugas e disse que os atos que possibilitam o orçamento secreto são “patrimonialistas e obscuros”:

— A utilização indevida das emendas parlamentares para satisfação de interesses eleitorais representa grave ameaça à concepção dos objetivos fundamentais da República, consistente em promover o desenvolvimento nacional equilibrado e sustentável, reduzir as desigualdades sociais e regionais e erradicar a pobreza e a marginalização.

A ministra já havia determinado a suspensão dos pagamentos das emendas de relator em novembro do ano passado, mas liberou um mês depois com a promessa de Pacheco de que identificaria os “padrinhos” das indicações. Ontem, a relatora destacou que nem mesmo o Congresso soube dizer quem eram os responsáveis por 30% do dinheiro enviado a redutos eleitorais dos parlamentares em anos anteriores:

— Não foram cumpridas as determinações emanadas desta Corte.

“Fecha logo o Congresso”

O teor do voto de Rosa foi mal recebido por aliados de Lira na Câmara. Segundo parlamentares do Centrão ouvidos pelo GLOBO, a abrangência da manifestação da ministra foi considerada inaceitável. Ou seja, uma intervenção indevida nas prerrogativas do Legislativo.

Parlamentares devem aguardar o fim do julgamento no Supremo para votar a chamada PEC da Transição, prioridade do governo Lula para conseguir cumprir promessas de campanha, como o Bolsa Família de R$ 600.

No Congresso, parlamentares desconfiam que petistas têm agido nos bastidores para influenciar a derrubada do orçamento secreto, uma vez que o mecanismo dá mais poder ao Legislativo para determinar como o futuro governo deverá gastar o dinheiro público.

Aliados de Lira esperavam uma construção política entre Congresso, Judiciário e governo e eleito para a manutenção das emendas de relator, mas o voto de Rosa indicou que não deve haver acordo.

— Era melhor fechar logo o Congresso. Eu, se fosse o Lira, não votava mais nada de orçamento do Judiciário — disse o deputado Wellington Roberto (PL-PB), aliado do presidente da Câmara.

Lira acompanhou o julgamento de seu gabinete com deputados petistas, com o futuro líder do governo, José Guimarães (PT-CE), e o líder do partido, Reginaldo Lopes (PT-MG), além do relator da PEC da Transição, Elmar Nascimento (União-BA).

Logo após a sessão, parlamentares do PP, que acompanhavam o julgamento pelo celular, saíram da antessala do gabinete de Lira e disseram que o voto de Rosa “deixava tudo em suspenso”.

“A utilização indevida das emendas parlamentares para satisfação de interesses eleitorais representa grave ameaça à concepção dos objetivos fundamentais da República”

“Trata-se de "orçamento secreto", não se sabe quem são os parlamentares integrantes do grupo privilegiado, não se conhecem as quantias administradas individualmente, não existem critérios objetivos e claros para a realização das despesas. Tampouco observam-se regras de transparência na sua execução”

Rosa Weber, presidente do STF