Valor Econômico, n. 4916, 10/01/2020. Legislação & Tributos, p. E2

Voto plural deve voltar a existir no Brasil
Daniela M. L. Sanchez


Temos testemunhado IPOs de empresas brasileiras acontecendo nos Estados Unidos. Desde o ano passado, já ocorreram cinco ofertas deste tipo. Dentre os motivos normalmente afirmados, estão a necessidade de alta captação e o desejo dos fundadores se manterem no controle da companhia.

Em todas as ofertas realizadas, a estrutura de capital escolhida foi a de emissão de duas classes de ações ordinárias: a classe ofertada geralmente é de ações com direito a um voto por ação (voto simples), e outra classe, que dá direito a dez votos por ação (voto plural), e que fica em poder dos fundadores e administradores da companhia. Isto é possível nos Estados Unidos (e em diversos outros países) mas no Brasil, não.

A questão de fundo é a vedação, contida na Lei das Sociedades Anônimas, à emissão de ações com direito a voto plural. Esta vedação foi efetivamente formalizada no Brasil em 1932, pelo Decreto 21.536, sob argumento de evitar concentração do poder em quem pouco capital investiu na companhia, tendência a decisões aventureiras por parte da administração, expropriação dos acionistas não controladores do valor do prêmio de controle em caso de alienação da empresa e ocorrência de abusos por parte do controlador.

Embora os problemas de abuso de poder tenham sido diagnosticados com clareza, a solução dada, a vedação em si, não é capaz de evitar que tais problemas deixassem de existir. Foi a Lei 6.404/76, mais de 40 anos depois, que criou regime de responsabilização do acionista controlador e da administração, além de direito de tag along para acionistas minoritários em caso de venda do controle da companhia. Estas disposições, principalmente quando exigidas e aplicadas de maneira eficaz, respondem aos receios em relação ao abuso de poder. Mas, a despeito das inovações trazidas pela Lei 6.404/76, a vedação permaneceu.

As ofertas de companhias brasileiras realizadas no exterior utilizando-se de estrutura de ações com voto plural traz de volta a discussão no Brasil, e este debate ocorre não apenas aqui. No mundo todo, por motivos relacionados a atratividade de mercados, manutenção do poder de controle, governança, e até mesmo de competição entre os ambientes de listagem, o direito ao voto plural tem sido analisado - e adotado por muitas jurisdições.

Um dos maiores IPOs do mundo não foi realizado no país da sede da companhia, na China, preferindo fazê-lo na Bolsa de Nova Iorque, por ser vedado na Hong Kong Exchange a listagem de ações com direito de voto plural. Depois desta oferta, a bolsa de Hong Kong alterou seu regulamento de listagem, em 2018, para aceitar ofertas de ações com direito de voto plural.

Ocorreu o mesmo em outros países: a Itália mudou sua lei depois que uma importante empresa do setor automobilístico transferiu sua sede para a Holanda e lá fez uso de ações com direito de voto plural. Na França, a Lei Florange mudou o “Code de Commerce” para dotar as ações de voto plural após um determinado período de permanência do acionista na companhia. E, mais recentemente, Singapura passou a permitir a listagem de ações com direito de voto plural. Estudo recente da ACE Governance, preparado sob encomenda para a B3, mostra que dentre as 20 maiores bolsas de valores do mundo, em 12 delas são aceitas ações com direitos de voto plural.

A CVM colocou em audiência pública a volta da possibilidade de BDR (Brazilian Depositary Receipt) ser emitido por empresas brasileiras que tenham listado suas ações no exterior, além de outras alterações que permitiriam maior acesso de investidores a ações emitidas em outras jurisdições. Não deixa de ser uma forma de contornar a vedação prevista na Lei 6.404/76 que traz um certo embaraço: a companhia brasileira não pode emitir ações com direito de voto plural no Brasil, mas se listar suas ações em outras jurisdições, mesmo que com voto plural, poderá ofertá-las aqui. Isso mostra o quão necessário é mudar a lei. Já assistimos os controladores de algumas das empresas que optaram por listas as ações de suas companhias fora do Brasil justificarem que um dos motivos foi, justamente, manter o controle de suas companhias.

Por conta destes recentes eventos, talvez estejamos em vias de ver ser retirado o falso manto de melhor governança que foi colocado sobre as companhias cujo capital é composto exclusivamente por ações com direito a um voto. Até mesmo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, em 2016, na revisão do seu Código de Melhores Práticas, passou a admitir a possibilidade de haver ações com direitos de votos distintos e sugere a inclusão de uma “sunset clause”, ou seja, a determinação de um momento em que todas as ações passariam a ter direito de voto igual.

Encontra-se em trâmite no Congresso, o Projeto de Lei 10.736/18, que propõe alterar a Lei 6.404 para permitir a emissão de ações com direito de voto plural. O texto proposto determina obrigatoriedade de conversão das ações com voto plural para ações com voto simples (sunset clause) no prazo de três anos, prorrogáveis por igual período. A iniciativa é válida, mas requer ajustes: deve permitir que companhias abertas possam emitir classes distintas de ações ordinárias e que a sunset clause seja formulada, se for, de maneira livre entre acionistas fundadores e investidores.

O empreendedorismo é louvável e deve ser reconhecido - não tolhido. Os abusos devem ser evitados e punidos. A boa e verdadeira governança previne e conscientiza, mas, se mesmo assim ocorrerem abusos, é imprescindível que as punições ocorram de forma rápida e exemplar (enformecement eficaz), sem prejuízo da criação de outros mecanismos de punição que sejam realmente desencorajadores. Nesse sentido, a CVM e OCDE estudam mecanismos de aprimoramento da lei e regulamentos que, esperamos, ver em breve em prática. O voto plural não pode mais permanecer vedado.