Título: Abaixo os Direitos Humanos
Autor: David Reiff
Fonte: Jornal do Brasil, 09/10/2005, Internacional, p. A9

O relacionamento entre as Nações Unidas e os movimentos de defesa dos Direitos Humanos sempre foi ambíguo. Por um lado, a ideologia de direitos humanos ¿ que é uma ideologia tanto quanto o comunismo e o liberalismo ¿ é profundamente legalista, cobrando a legitimidade de tratados e outros instrumentos nacionais e internacionais. Eles incluem, como ¿o primeiro entre iguais¿, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, escrita em 1948. Os movimentos dessa linha na atualidade nasceram fora do organismo, e em muitas maneiras nunca foram ali abrigados. Por outro lado, as Nações Unidas são mais que um púlpito largo para a promulgação dos altos ideais sobre direitos humanos, igualdade, liberdade pessoal e econômica, do que uma estação no caminho da governância mundial ¿ não importando o que os extremistas conservadores nos Estados Unidos imaginam. Além disso, como um centro institucional, a ONU é um corpo intergovernamental cujos funcionários, do mais simples contínuo ao secretário-geral, servem aos interesses dos Estados-Membros ¿ acima de tudo, os mais poderosos. Como resultado dessa profunda contradição entre ambição e mandato, a instituição muitas vezes parece trabalhar mais para impedir o avanço nos direitos do que para concretizá-los.

Quem duvida pode lembrar a falta de vontade do secretário-geral, desde U Thant a Kofi Annan, para encontrar ¿ ou, em muitos casos, mesmo trabalhar em cima das premissas da instituição ¿ com vítimas das violações de direitos humanos que tiveram a infelicidade de nascer em países poderosos. Para todo o comprometimento intelectual da ONU com o desenvolvimento do direito, sabem que é melhor isso do que provocar o descontentamento dos chineses e russos por receber ativistas do Tibete e da Chechênia.

Para ser justo, nenhum outro secretário-geral pagou tantos tributos por sua dedicação aos ideais dos movimentos, ou por ter tentado, pelo menos retoricamente, associar as Nações Unidas com tais ideais do que Kofi Annan. Retórica não é realidade, naturalmente, e as declarações aprovadas pela Assembléia Geral parecem ter sido sempre removidas do cotidiano prático.

Mas palavras não são proferidas sem que haja conseqüências e não há dúvidas de que os direitos humanos têm ocupado um lugar de destaque nas deliberações internacionais durante a tensa era Annan, muito mais do que antes. Além disso, a indicação da ex-presidente da Irlanda Mary Robinson para o cargo de alto comissário para os Direitos Humanos foi o instrumental em muitos países em desenvolvimento, que passaram a adotar uma agenda favorável ao tema, anteriormente quase sempre visto como uma bandeira de conveniência para os países do Ocidente.

Assessores próximos a Annan dizem que ele sonhava em consolidar algum sucesso quanto a esses temas durante a última Assembléia Geral, realizada em setembro. Havia escrito, inclusive, que a ONU ¿deveria assumir a causa dos direitos humanos seriamente tanto quanto a da segurança e a do desenvolvimento.¿ Entre as propostas-chave estavam a reforma ampla da altamente desacreditada Comissão para os Direitos Humanos ¿ um corpo que não possui mecanismo para expulsar notórios violadores como Líbia, Cuba e Zimbábue ¿ para ser transformada em Conselho de Direitos Humanos, onde tal embaraço não poderia, pelo menos em tese, ser tolerado.

O consenso geral é que a tentativa foi um fracasso, e o próprio Kofi Annan reconheceu isso. As razões foram muitas, entre elas, a estratégia americana de apresentar dezenas de emendas ao texto que seria apresentado, transformando-o em um mero apanhado de denominadores comuns sem qualquer conseqüência. Também há muito ceticismo entre os países em desenvolvimento sobre se um comprometimento forte das Nações Unidas com os direitos humanos foi o que realmente Annan queria arrancar, ou se era mais uma bandeira de conveniência. Ou pior, uma garantia legal para uma intervenção militar ocidental.

Grande atenção tem sido dada aos estratagemas de John Bolton, o feroz anti-ONU que o presidente Bush nomeou para o cargo de embaixador dos EUA no organismo. Mas o que se perdeu com essas discussões está nas sinergias malignas entre as suspeitas do Terceiro Mundo ¿ de que as intervenções humanitárias são apenas uma versão reduzida do colonialismo ¿ e uma visão unilateral que a Casa Branca associa ao conceito de guerra preventiva. Contra inimigos que imagina estar violando direitos humanos.

Em função da administração Bush, como seus funcionários insistem em dizer, a disseminação da democracia, com regimes orientados para obedecer os direitos humanos ¿ à força, se necessário ¿, tornou-se o centro da política externa americana. Aqueles que observam apenas um imperialismo agressivo na intervenção da América no Afeganistão e no Iraque têm uma visão de direitos humanos mais cética. Nesse raciocínio, a ONU, Annan e os ativistas foram apanhados num fogo cruzado.

Tudo isso remete a um dos últimos filmes do diretor espanhol Luis Buñuel. Na seqüência inicial, aparece um grupo de guerrilheiros durante a revolta contra Napoleão sendo levados a um paredão para serem executados. Na frente do pelotão de fuzilamento, um soldado carrega a bandeira francesa. Sobre ela, as palavras Liberdade, Igualdade e Fraternidade, lema da Revolução Francesa. Os guerrilheiros são postos junto à parede. Depois, quando os soldados apóiam as armas sobre os ombros, um insurgente grita: ¿Abaixo a liberdade!¿ Não progredimos muito depois disso. (Project Syndicate)