O Globo, n. 32681, 28/01/2023. Brasil, p. 9

200 KM rumo ao descaso

Cyneida Correia


Ao fim de cinco dias de caminhada sem carona e sem ter como comer direito, a família Sanöma, pai, filho e cunhado, chegou a Boa Vista em busca de atendimento médico e assistência. Os termômetros marcavam mais de 36 ºC. Os três são de um dos subgrupos ianomâmis obrigados a percorrer uma “rota da sobrevivência” longa, para além de seu território, com o agravamento da crise sanitária. Da aldeia até a capital de Roraima, foram mais de 200 quilômetros atravessando rios, cidades e estradas por dentro da selva amazônica.

— Não tem remédio, nem saúde, nem comida. Muita briga. Trouxe a família para atendimento. Voltamos andando — disse um deles, em um português precário, de difícil entendimento, antes de embarcarem numa carona da reportagem até o Centro, o que lhes exigiria pelo menos mais 30 quilômetros de caminhada.

Movimento pendular

O êxodo de indígenas é um movimento pendular em que os ianomâmis deixam as aldeias em busca de socorro e depois voltam, mas ainda convalescentes, a pé. É o retrato do desespero em que vive parte dos integrantes de cerca de 250 aldeias entre Amazonas e Roraima. Nômades e coletadores, os ianomâmis caminham debilitados pela fome, pelas verminoses, pela malária e pela pneumonia.

As peregrinações foram denunciadas pelo presidente do Conselho de Saúde Indígena do Distrito Especial Sanitário Indígena Yanomami, Júnior Hekurari, em 4 de outubro, para o então coordenador distrital de saúde da região, Ramsés Almeida da Silva. Ex-vereador pelo Republicanos, então da base do presidente Jair Bolsonaro, Ramsés foi afastado no mês seguinte após uma operação da Polícia Federal sobre desvio de medicamentos destinados aos ianomâmis.

O ofício com a denúncia é talvez um dos mais dramáticos entre os cerca de 20 documentos com alertas sobre a saúde ianomâmi na gestão Bolsonaro. Júnior relatou que pacientes da ala Xirixana e Xiriana da Casai estavam retornando para a floresta a pé, atravessando aproximadamente 240 quilômetros, por falta de aviões e helicópteros. Nada foi feito. Os indígenas ainda são vistos perambulando por Boa Vista. “O conselho tem sido informado por lideranças indígenas e associação que vários pacientes estão de alta há muito tempo, esperando por voos de retorno para suas comunidades e os mesmos têm demorado demasiadamente”, alertou Hekurari.

Os três ianomâmis encontrados na estrada na quinta-feira estavam vestidos de camisa de malha e shorts. Municípios limítrofes da reserva costumam doar roupas para as aldeias. Parte da etnia é de contato recente, e por isso, tem dificuldade de se comunicar.

— Os ianomâmis foram abandonados. É uma comunidade que se dispersou e faz alguns anos que ficou sem saúde. Eles vêm por conta da destruição da terra indígena. Alguns já se deslocaram para fazendas no entorno e são vítimas de exploração, aliciamento. Os que vêm para cidade andando ficam vulneráveis, sem assistência. É uma área vermelha para eles — explica a antropóloga do Conselho Indígena Missionári Gilmara Fernandes.

A única forma de se chegar lá aos pontos mais profundos da floresta da Terra Indígena Yanomami, onde a maior parte se dos indígenas se encontram, é por via aérea. O território tem quase 100 mil km², pouco mais do que a área de Pernambuco (98 mil km²).

O governo de Roraima diz que os indígenas são assistidos pelo governo federal, e os que circulam por Boa Vista são responsabilidade da Funai. A prefeitura da capital Boa informou que atende os ianomâmis, e o Hospital da Criança Santo Antônio internou, no ano passado, 703 indígenas. Nesta semana, havia 46 são crianças ianomâmis internadas.

Piora a partir de 2017

As principais causas das internações são diarreia aguda, gastroenterocolite aguda, desnutrição, desnutrição grave, pneumonia, acidente ofídico e malária.

— A falta de fármacos simples, como s para combater verminoses, aceleraram a tragédia ianomâmi. Estima-se que 10 mil crianças, de um total de cerca de 14 mil, deixaram de receber remédios, agravando a subnutrição. Havia políticos que nomeavam agentes de saúde e loteavam cargos-chave para direcionar licitações — detalha o procurador da República Alisson Marugal, que denunciou esta semana o descaso com os indígenas no governo Bolsonaro e investigou o desvio de remédios na operação que levou ao afastamento de Ramsés.

Embora haja registro de subnutrição infantil no território ianomâmi pelo menos desde 2009, Marugal diz que a situação se agravou a partir de 2017 e atingiu seu ápice no ano passado. Segundo o procurador, entre o fim de 2021 e o ano passado, 300 crianças com sinais de desnutrição precisaram ser transferidas para tratamento em Boa Vista, por causa do garimpo ilegal e da omissão do Estado.

Os samöna vivem no alto do Rio Auaris, no extremo Noroeste de Roraima. Mas a família contou que veio através de Mucajai, no Norte do estado. Muitos ianomâmis estão se deslocando por conta do garimpo em seus locais de origem.

Na Casa de Apoio à Saúde Indígena, em Boa Vista, os profissionais têm uma rotina de guerra, se dividindo entre crianças e adultos, macas e redes, usadas por serem mais familiares para os indígenas. Sem saber português, se comunicam por gestos, mas às vezes isso não é suficiente. Exames são fundamentais.

Uma médica que não quis se identificar contou que, devido ao desmonte de distritos sanitários, muitas vezes não havia o que fazer nas aldeias. O retorno a Boa Vista podia ser um momento de angústia, pela irregularidade no pagamento dos voos pelo poder público.