O Globo, n. 32681, 28/01/2023. Política, p. 7

Insistência de Lula com “golpe'' de Dilma incomoda até aliados

Gustavo Schmitt
Fernanda Alves


Adversários e até aliados reagiram à fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante viagem ao Uruguai, na quarta-feira, quando o petista chamou o ex-presidente Michel Temer de “golpista”, em alusão ao impeachment da ex presidente Dilma Rousseff. A declaração provocou desconforto em partidos próximos ao governo, como MDB e União Brasil, deu munição para provocações da direita e reacendeu disputas antigas com rivais como o PSDB.

Com indicações em ministérios importantes na gestão Lula, o MDB procurou tratar o mal-estar internamente, mas não deixou de compartilhar em seu perfil oficial a reação de Temer. O ex-presidente respondeu Lula com ironia ao dizer que recuperou o país da maior recessão da História e que o episódio na verdade tratou-se de um “golpe de sorte”. Na semana passada, a sigla já havia classificado como “um erro” a referência ao afastamento de Dilma como golpe numa publicação institucional no site do governo federal.

O presidente do MDB, Baleia Rossi, não se pronunciou. Aliados, no entanto, admitem o incômodo na legenda e lembram que Baleia tem se empenhado e ido a Brasília de forma assídua para ajudar o governo Lula na discussão da reforma tributária, proposta tida como vital para a recuperação da economia. Na sigla, existe certa compreensão da mágoa dos petistas. Por outro lado, lideranças dizem que a declaração de Lula não ajuda e reiteram que o país tem problemas reais mais graves para tratar.

Também na base do governo, Luciano Bivar, presidente do União Brasil, disse que Lula “foge da realidade factual”.

— Eu não sou antropólogo nem outro estudioso qualquer da natureza humana. Mas ninguém foge à realidade factual. Fugir disso é negar a sociologia, a antropologia e todos os estudos que dizem respeito à sociedade em evolução — afirmou Bivar.

Ex-ministro na gestão de Jair Bolsonaro, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) reagiu nas redes sociais. Disse que a declaração ataca a ministra Simone Tebet (Planejamento). Além de Tebet, outros cinco integrantes de ministério de Lula — José Múcio (Defesa) e Carlos Fávaro (Agricultura), Marina Silva (Meio Ambiente), Juscelino Silva (Comunicações) e André de Paula (Pesca) — foram favoráveis ao afastamento de Dilma. Até mesmo o vice-presidente Geraldo Alckmin, também ministro (Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), que inicialmente resistiu, aderiu ao impeachment. Nas eleições de 2022, no entanto, Alckmin recuou e disse que não foi golpe, mas que foi injusto.

Ação contra Lula

Mesmo personagens forjados na política durante o impeachment de Dilma aproveitaram o assunto para fustigar o PT e Lula. Um dos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL), o deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) representou contra Lula na recém-criada Procuradoria Nacional da Defesa da Democracia e acusou o presidente de disseminar fake news ao afirmar que o impeachment de Dilma foi golpe.

Especialista em direito constitucional, Vera Chemin rebate a tese de “golpe ”. Ela afirma que o impeachment cumpriu o rito de um processo constitucional, com trâmite na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e no próprio Supremo Tribunal Federal.

— A partir do momento em que a ex-presidente Dilma foi enquadrada em um ou mais dispositivos da Lei do Impeachment, não há que se falar em “golpe de Estado”. É preciso, sim, respeitar a acusação pela Câmara e a decisão final do Senado Federal, competente constitucionalmente para sentenciar o seu impeachment, sob a presidência de um dos ministros do STF, conforme dispõe aquela legislação, em consonância com os dispositivos da Constituição Federal de 1988.

Procurado pelo GLOBO, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment de Dilma, preferiu não se manifestar. Na terça-feira, ele disse ao jornal o Estado de S.Paulo que a declaração de Lula é “inoportuna”:

— Houve um processo regular previsto na Constituição, tendo a OAB federal entrado com igual pedido em face do desastre da recessão que jogou o país na miséria. O PT entrou com mais de cem pedidos de impeachment contra FHC. É uma narrativa que não ajuda o país agora — disse o jurista, que apoiou Lula no segundo turno da eleição de 2022.

Quem também reitera esse argumento é uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma, a deputada estadual Janaína Paschoal (PRTB). Ela disse que Lula se assemelha a Bolsonaro ao recorrer à retórica do golpe e falar apenas para seu núcleo duro.

— Ele (Lula) esquece que foi eleito por uma frente ampla com quadros que apoiaram e votaram o impeachment. Bolsonaro afundou por não compreender que foi eleito por uma pluralidade. Lula está mergulhando no mesmo erro.

Autor do último voto do impeachment de Dilma, o presidente do PSDB, Bruno Araújo, adotou tom semelhante ao de Nogueira e disse que Lula está “preso a uma retórica de palanque”:

— Ele (Lula) tenta esquecer, por exemplo, que o presidente do STF presidiu a sessão do impeachment ou que boa parte do seu governo tem integrantes que votaram pelo impeachment. Pena que com tantos problemas reais que o país tem, fique preso a uma narrativa que desrespeita às instituições do Estado brasileiro.