O Globo, n. 32681, 28/01/2023. Política, p. 4

Golpismo orquestrado

Eduardo Gonçalves
Patrik Camporez


Três semanas após os ataques às sedes do três Poderes em Brasília, o interventor na segurança pública do Distrito Federal, Ricardo Cappelli, apresentou uma autópsia do que agora se revela uma tragédia anunciada. Num relatório de 62 páginas, ele comprova que o então secretário de Segurança da capital, Anderson Torres, ignorou um relatório de inteligência que alertava para o risco de invasão ao Congresso, detalha o rosário de falhas da Polícia Militar e mostra que a ação contou com planejamento profissional que culminou com a invasão e depredação dos principais endereços da República. As conclusões estão no documento entregue ontem ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator das investigações de atos golpistas. Foi o magistrado quem determinou o afastamento de Ibaneis Rocha do cargo de governador pelo período de 90 dias, logo após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretar a intervenção por um mês.

— Há uma sucessão de problemas: o planejamento operacional inexistente, que coloca um número de homens insuficiente, a postura inaceitável diante de uma grave ameaça à República e uma movimentação operacional inadequada — resumiu Cappelli.

“Tomada do poder”

O material expõe a omissão de Torres, que foi ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, diante do ataque iminente. Dois dias antes dos atos, a Secretaria de Segurança do DF, então sob o comando de Torres, recebeu um relatório de inteligência apontando risco de invasão ao Poder Legislativo em 8 de janeiro. “As divulgações apresentam-se de forma alarmante, dada a afirmação de que a ‘tomada de poder’ ocorreria, principalmente, com a invasão do Congresso ”, segundo o documento. O texto indica ainda que entre os golpistas havia “Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs)” que faziam postagens ameaçando “sitiar” Brasília. De acordo com a apuração, o então secretário não tomou as providências necessárias para impedir as investidas violentas — ele viajou para os Estados Unidos dois dias antes das invasões. Torres foi preso ao desembarcar no Brasil, por ordem de Moraes, sob acusação de conivência com os atos.

— Ele (Torres) gerou instabilidade com exonerações e trocas (no comando da secretaria). Logo depois, viajou, recebeu um relatório de inteligência, e esse relatório não gerou nenhum desdobramento. Não é só uma questão burocrática — disse o interventor, mencionando desligamentos que o ex-secretário promoveu ao assumir a pasta. Os manifestantes levaram uma hora e 40 minutos entre a saída do acampamento em que a maioria deles estava, em frente ao Quartel-General do Exército, até a primeira barreira das forças de segurança. Segundo Cappelli, houve tempo suficiente para que mais tropas da PM fossem acionadas, o que não ocorreu. O interventor aponta outros elementos que comprovam as graves falhas de segurança. Ele citou que não houve convocação prévia de policiais para reforçar o efetivo. Alguns PMs estavam apenas de sobreaviso, em suas casas, e não de prontidão, nos batalhões. Além disso, nove comandantes estavam de férias ou licença no dia 8 de janeiro, entre eles o do Batalhão de Choque.

O relatório detalha a falta de efetivo. Imagens das câmeras de segurança revelam que havia cerca de 150 policiais militares fazendo uma linha de contenção na frente do Congresso. A tropa contava com alunos do curso de formação de praças, ainda inexperientes, e sem equipamentos adequados para atuar naquela situação, como o exoesqueleto, uma espécie de armadura. Na zona central de Brasília, havia 550 PMs, número considerado insuficiente.

“Perdeu o comando”

Cappelli, no entanto, relativizou a responsabilidade individual do então comandante da PM, coronel Fábio Augusto, que também foi preso por ordem de Moraes por suspeita de omissão. O interventor afirma que a apuração mostra que ele atuou para defender os prédios públicos e chegou a ser ferido na cabeça por um cone arremessado por um manifestante. Nas palavras de Cappelli, Fábio Augusto “perdeu a capacidade de comando” sobre a tropa e não teve os apelos por mais efetivo atendidos. Outros aspectos mereceram atenção destacada do responsável pela intervenção: a pujança do acampamento bolsonarista, descrito por ele como “centro de construção de planos contra a democracia”, e o planejamento dos vândalos. Cappelli falou que o ataque só ocorreu devido a uma “ação profissional e programada” do grupo, que arquitetou o atentado numa “mini cidade golpista”, termo que usou para se referir ao acampamento. Havia extremistas com óculos de proteção, máscaras e rádios comunicadores, de acordo com o interventor.

— É impressionante como eles puxam a primeira linha de gradis. E ela cai de uma ponta a outra. Há um movimento coordenado — disse, para exemplificar o nível de organização. Em meio aos esforços para encontrar responsáveis e participantes, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, reafirmou ontem que membros da Força envolvidos nos atos golpistas serão punidos. Em reunião com Lula, o oficial já havia reforçado a mensagem — a resistência em levar adiante as sanções foi um dos motivos da troca no comando.

— Qualquer militar ou civil, ninguém está acimada lei. Isso( punição) agente faz com tranquilidade — disse, após um encontro com o vice-presidente Geraldo Alckmin.