Valor Econômico, n. 4916, 10/01/2020. Especial, p. A12

Violência menor abre espaço para planejamento
Anaïs Fernandes
Leila Souza Lima


Dados compilados pelo governo federal e monitorados pelos Estados indicam que o Brasil registrou em 2019 nova queda em índices criminais, oferecendo algum alívio às autoridades no front da segurança pública. O cenário abre uma janela de oportunidade para o país avançar neste ano em mudanças estruturais, como inteligência, tecnologia e transparência dos dados, temas que ainda estão em segundo plano na agenda política, na avaliação de especialistas.

Até agosto de 2019, último dado disponível, houve redução em todos os nove tipos de crimes registrados na Sinesp, plataforma do Ministério da Justiça construída com base nos boletins de ocorrência dos Estados e do Distrito Federal. Os homicídios dolosos caíram 22% no país, na comparação com igual período de 2018. Latrocínios (roubos seguidos de morte) recuaram 21,7%. Nos roubos de carga, a redução foi de 22,9%, e, para roubos de veículos, de 24,9%. A ocorrência de estupros registrados caiu 10,5%.

O processo de nacionalização da queda de certos índices criminais, a exemplo dos homicídios dolosos, marcou 2018 e fez com que o governo do presidente Jair Bolsonaro “assumisse nas melhores condições da área em muitos anos”, de acordo com Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). “Os governos anteriores tinham que reagir a crises, precisavam correr atrás e a agenda era atropelada. De certa forma, essas pressões foram retiradas das costas do governo”, afirma.

Entre 2015 e 2016, nove unidades da federação haviam reduzido suas taxas de mortes violentas intencionais, uma categoria do FBSP que corresponde à soma das vítimas de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais. Em 2017, 15 entes observaram redução no indicador e, no ano seguinte, 23 das 27 unidades da federação registraram queda - apenas Amapá, Pará, Tocantins e Roraima apresentaram alta.

Segundo Lima, o processo de nacionalização continuou no ano passado, e uma mudança marcou 2019: o governo federal trouxe a segurança para o centro do debate. “Era algo que outros governos evitavam, colocavam como uma responsabilidade dos Estados, mas a segurança pública é compartilhada entre União, Estados e municípios. Bolsonaro explorou uma fragilidade da relação federativa, soube oferecer uma perspectiva de que alguém estaria olhando para o problema, ainda que tecnicamente as propostas fossem vazias”, afirma.

Soma-se a isso a escolha de Sergio Moro para o Ministério da Justiça, figura que “tem poder de mobilização como poucos”, diz Lima. Pesquisa Datafolha do início de dezembro de 2019 apontou que Moro era conhecido por 93% dos entrevistados, e 53% deles avaliavam sua gestão como ótima/boa. O próprio Bolsonaro tem desempenho mais modesto, com 30% de ótimo/bom. “Pressões políticas e sociais diminuem. A queda nas taxas dá uma sobrevida, tira um pouco da urgência, mas a verdade é que continuamos com muitos problemas não endereçados”, diz Lima.

Para Joana Monteiro, professora da FGV, falta o Brasil “virar a chave e pensar a segurança como política pública”. A queda nos crimes violentos ajuda muito nesse processo, “mas é um momento que a gente está perdendo”, ela afirma. “Em crise, não se consegue pensar em planejamento. Em um contexto de queda [nas taxas criminais], por que não investir em avaliar de verdade o que foi feito, o que funcionou ou não? A gente tem janela política para isso agora.”

Segundo Joana, a política criminal brasileira ainda é muito focada em operações de rua, com investimentos tímidos em investigação, segmento em que o governo federal tem potencial de liderança. Levantamento do Instituto Sou da Paz mostra que, até novembro, foram empenhados R$ 271,5 milhões (15%) do Fundo Nacional de Segurança Pública, sendo que 54% desses recursos foram destinados à Força Nacional, isto é, “a operações de natureza emergencial ostensiva ou repressiva”, explica o instituto. O aperfeiçoamento da gestão e tecnologia da informação recebeu 21,4% do volume empanhado.

Nesse quesito, o pacote anticrime de Moro, sancionado por Bolsonaro no Natal, traz avanços. Um deles é a criação de um Banco Nacional de Perfis Balísticos, além do fortalecimento do Banco Nacional de Perfis Genéticos, que alcançou 67 mil cadastros em 2019, segundo o Ministério da Justiça. “Mas não avançamos em discussões sobre cadastros de armas de fogo, por exemplo. Passamos por um processo enorme de debate sobre liberalização de armas, mas pouco se falou sobre como vamos ter controle sobre isso em um contexto de mais pessoas com acesso a armamento”, diz Joana.

Para a professora, é preciso aprofundar as informações do próprio Sinesp. “Ele começou a ser estruturado mais fortemente em 2018, foi um avanço colocar dados on-line, mas não temos as informações por município. Esse é o tipo de coisa que requer investimento contínuo e prioridade política, porque precisamos entender o que está acontecendo”, afirma Joana.

Segundo informações do Ministério da Justiça, foram investidos no ano passado R$ 32 milhões em infraestrutura digital para facilitar a integração e análise de grandes volumes de dados de segurança pública.

A pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Marina Bohnenberger comparou programas para redução de homicídios em oito Estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco, Bahia, Ceará e Paraíba) e no Distrito Federal. Mais do que propor grandes mudanças de arquitetura institucional, Marina identificou que muitos programas visam incrementar a eficácia e a eficiência daquilo que já existe, concentrando energias na estruturação de sistemas de análise criminal, no uso intensivo de informações e no aperfeiçoamento da inteligência.

“Muitos Estados adotaram estratégias de otimização de recursos e optaram por priorizar a gestão enquanto ferramenta de indução de mudanças, mas a avaliação do impacto destas políticas ainda é um desafio”, ela pondera em sua análise. “Para ter uma ideia, dos Estados citados, só os programas de Pernambuco, intitulado Pacto pela Vida, e o de Minas Gerais, o Fica Vivo!, contaram com avaliações de impacto sobre seus resultados.”

Na esfera federal, Joana diz ver com receio, por exemplo, os números divulgados no âmbito do Em Frente Brasil, um projeto-piloto do governo federal para traçar estratégias e promover a colaboração entre União, Estados e municípios no combate à criminalidade em cinco cidades selecionadas. De acordo com o Ministério da Justiça, desde que teve início, em 30 de agosto, até 7 de dezembro, a integração entre as forças de segurança resultou na queda de 43,5% nos homicídios em Ananindeua (PA), Cariacica (ES), Goiânia (GO), Paulista (PE) e São José dos Pinhais (PR).

“O programa é bem desenhado, vai na direção certa, mas dizer certas coisas ainda é prematuro. Um segundo momento seria ter dados transparentes para avaliar o impacto, saber o que deu certo ou não, mas não temos os dados municipais, não podemos saber se nos meses anteriores as taxas já vinham caindo. Se a gente quer promover avanços na área de segurança, precisamos ter o pé no chão”, diz Joana.

Queda de homicídios no país tem trajetória sustentada há cinco anos

Embora o governo Jair Bolsonaro (PSL) venha defendendo reiteradamente que a redução nas taxas de homicídios no país se deve às recentes políticas federais de segurança pública, dados sobre violência até 2018 mostram tendência de retração sustentada em diferentes Estados desde 2014 - e de forma ininterrupta na Paraíba e em São Paulo, além de Distrito Federal. A análise é do Instituto Sou da Paz, que toma como base números reunidos pelo Monitor da Violência.

Em 2017, foi registrada diminuição dos homicídios em 16 das 27 unidades federativas. Das 24 em que houve redução em 2018, 14 já haviam apresentado índice menor em 2017 na comparação com 2016. Por esse prisma, o resultado de 2018 não é tão surpreendente quanto parece inicialmente, aponta a entidade.

Tampouco essa trajetória poderia estar relacionada a um ano só no poder, tempo suficiente apenas para proposição e aprovação de medidas, bem como manejo de recursos - o que pressupõe que se estabeleça tempo para avaliação segura dos impactos, argumenta Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Mas ela ressalva que, ainda que improvável por fatores ligados a prazos, a apropriação desse fenômeno é comum do ponto de vista político.

No dia 4, o ministro da Justiça, Sergio Moro, ironizou a posição dos especialistas que negam essa relação. “Crimes caíram em todo o país em percentuais sem precedentes históricos em 2019. Leio de alguns ‘especialistas’ em segurança pública que o governo federal não tem nada a ver com isso. Dos mesmos que compunham ou assessoravam os governos anteriores quando os crimes só cresciam”, escreveu Moro em sua conta no Twitter, após ter feito menção semelhante em meados de dezembro.

“Se quiserem atribuir a queda ao mago Merlin, não tem problema. Os criminosos, sem diálogos cabulosos, sabem por que os crimes caem. Trabalhamos para melhorar a vida das pessoas e o que importa é que os crimes continuem caindo”, publicou na sequência, ilustrando a ideia com imagem do personagem da animação dos estúdios Walt Disney.

Ao analisar os indicadores, Carolina contesta essa tese. “Há um dado já consolidado importante [da redução de homicídios], de 2018, que se reflete em 2019 em termos de Brasil. Mas para entendermos o que está por trás disso é preciso olhar os Estados; há uma variação muito grande entre eles”, ressalta a especialista, ao se referir às prováveis causas e aos números.

“Já quando observamos um conjunto de localidades - Distrito Federal, Paraíba e São Paulo -, percebemos que a queda desses indicadores já vinha ocorrendo”, afirma. “Há outro grupo em que as reduções não são consecutivas, mas por quatro anos viu o índice recuar. Fazem parte dele Goiás, Mato Grosso, Espírito Santo e Paraná.”

As razões apontadas pelo Instituto Sou da Paz para a retração nos homicídios divergem das propostas previstas no pacote anticrime do ministro Moro como fórmula para reduzir a incidência da violência - algumas delas centradas no endurecimento das políticas de segurança pública e no fortalecimento do uso da força policial. Políticas de gestão para resultados - como no Espírito Santo, em Goiás e no Distrito Federal -, de investimento na inteligência das polícias, como em Minas Gerais e São Paulo, ou de esclarecimento de homicídios, como na Paraíba, são exemplos na análise do instituto.

“Não são um milagre, uma bala de prata e têm limites, mas há evidências de que políticas estaduais nesse sentido podem dar contribuições positivas”, avalia Carolina. “É importante, porém, abrir os dados e ver quais Estados puxam essa retração há mais tempo; não é uma queda tão homogênea. Tem que ver o que pode ter acontecido para ajudar na redução das mortes violentas e até de outros crimes.”

Entre as novidades de 2018, estão Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, que, juntos, responderam por 31% da redução verificada no país em 2018. Já Pernambuco teve sua maior redução percentual entre 2018 e 2017 - uma queda de 23,2%. Contudo, essa foi sua única retração no período analisado, e 2017 registrou o pior índice, com 5.427 assassinatos.

O Espírito Santo vinha reduzindo o número de mortes violentas desde 2014, então o resultado de 2018 não é tão surpreendente. E só foi significativo, aponta a análise, porque a greve da polícia militar em 2017 impactou o número de homicídios, que cresceu no ano.

Embora ausente dos destaques do levantamento, Pernambuco, que entre 2007 e 2011 experimentou a implantação do Pacto pela Vida, é citado por Carolina. Ela faz menção também ao Rio do período entre 2009 e 2012, que registrou queda na violência com o Sistema Integrado de Metas (SIM) - política estadual paralela às UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que integrou as polícias, firmou metas e a obrigação de prestação de contas do trabalho policial.

“É difícil fazer afirmação categórica acerca dos resultados, porque nenhuma dessas políticas foi avaliada. Mas podemos olhar casos de sucesso como o Distrito Federak, que obteve êxito após implantar o Viva Brasília, nosso Pacto pela Vida, programa que criou indicadores, fez integração entre as polícias e incluía cobranças por parte da Secretaria de Segurança”, diz Carolina. “Na Paraíba mais recentemente, foi implantado o monitoramento do trabalho da polícia civil, com indicador de esclarecimento de homicídios. O que amarra é sempre inteligência, planejamento, uso de dados e informação, com os governos estaduais dando prioridade a essas políticas.”

A análise do Instituto Sou da Paz observa ainda que não se pode desprezar contexto socioeconômico e demográfico: a redução populacional de jovens nas faixas de idade mais vulneráveis à violência. Também lembra que o fortalecimento dos centros integrados de comando e controle, por ocasião de grandes eventos - como os Jogos Olímpicos -, pode ser mecanismo que ajuda a refrear o crime.

E, apesar de não haver informações oficiais, a entidade destaca que a ruptura, em 2017, da trégua entre facções criminosas - como PCC e CV - pode ter impulsionado conflitos sobretudo no Norte e Nordeste, incluindo o sistema prisional, como apontam analistas. 

Assim, a volta de “certo equilíbrio” pode explicar a redução de mortes em 2018 em alguns Estados. Para Carolina, a retração na violência deve ser festejada, mas ela faz ponderação que guarda relação com a influência desses movimentos sobre políticas adotadas. “É preciso cuidado com apropriações indevidas das causas das mudanças.”