O Globo, n. 32680, 27/01/2023. Opinião, p. 2

Governo tenta reescrever verdade sobre impeachment



Até as paredes depredadas do Palácio do Planalto sabem que a ex-presidente Dilma Rousseff foi afastada por um processo de impeachment, movido pelo Congresso Nacional de acordo com todas as regras previstas na Constituição e na legislação, referendadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e integrantes de seu governo têm insistido em desafiar a verdade e em se referir ao episódio como um “golpe”.

Foi o que Lula voltou a fazer depois de encontro com o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, ao se referir ao ex-presidente Michel Temer como “golpista”, expressão que já empregara antes. Mais grave ainda, a narrativa do “golpe” foi reproduzida por documentos oficiais — disseminando desinformação, que o governo diz combater. Ao noticiar a mudança de comando na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o site do governo cita “o golpe de 2016”. Que golpe é esse que ninguém viu?

Com toda a razão, o PSDB, que apoiou o afastamento de Dilma, recorreu à Justiça Federal para impedir que o governo use em seus meios oficiais a palavra “golpe” para se referir ao impeachment. Temer, por seu turno, lembrou em nota que Dilma foi condenada à perda do cargo sob acusação de ter cometido crimes de responsabilidade, com as “pedaladas fiscais” e decretos que geraram créditos orçamentários sem autorização do Parlamento.

Ela sofreu impeachment por seus próprios erros, ao mandar para o espaço a Lei de Responsabilidade Fiscal. Teve amplo direito de defesa, e o afastamento seguiu todos os trâmites legais, como manda a Constituição. Tudo às claras, com transmissão ao vivo pela TV. Iniciado em 2 de dezembro de 2015, o processo foi encerrado em 31 de agosto de 2016, quando o Senado decidiu, por 61 votos a 20, cassar o mandato da presidente da República (na Câmara, o pedido foi aprovado por 367 votos a 137, com sete abstenções).

O desfecho não surpreendeu, pois Dilma estava fragilizada politicamente. A despeito de o PT ter a maior bancada no Congresso, sua gestão incapaz de debelar a crise econômica custou-lhe a sustentação parlamentar no segundo mandato. Ela não tinha também base popular. Com o país mergulhado em crises, passeatas pedindo seu impeachment se sucediam. A cada aparição na TV, panelaços reverberavam expondo a escalada na rejeição.

A verdade inconveniente para o PT e para Lula é que nada disso violou nenhuma lei nem regra da democracia, como fizeram os vândalos golpistas que invadiram as sedes dos Três Poderes no 8 de janeiro. O impeachment de Dilma foi, pela própria natureza do instrumento, um processo ao mesmo tempo jurídico e político e, como todo evento traumático, teve um custo para a sociedade. Obviamente não agradou aos petistas. Mas foi tão legítimo quanto o impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992, apoiado pelo PT. Qual a diferença? O que pretende o Executivo agora? Reescrever a História sob a ótica das facções petistas?

Lula fez campanha, arregimentou apoio de amplos espectros da sociedade e se elegeu presidente defendendo a democracia e a Constituição, em contraponto aos arroubos golpistas do adversário, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Não pode, agora já eleito, querer estabelecer uma nova verdade para fatos históricos, como numa distopia orwelliana.