Valor Econômico, v. 20, n. 4894 05/12/2019. Legislação e Tributos, p. E2

 

Inovação e seus efeitos
Paulo Furquim de Azevedo


 

A inovação cria valor para a sociedade. Mas ainda assim há quem se oponha a ela; e não sem razão. Vejam os três seguintes casos: Em 2015, taxistas bloqueiam as ruas de acesso à Câmara de Vereadores de São Paulo para pressionar os vereadores a votar projeto de lei que tornava ilegal a atividade de aplicativos de transporte particular de passageiros.

Também na mesma época, as empresas de telefonia manifestavam-se em desfavor dos serviços de voz sobre IP que estavam corroendo a receita que extraíam da concessão sobre os serviços de voz por telefone. Agora, em 2019, entidades que representam empresas de transporte rodoviário por ônibus regulares abriram diversos processos judiciais contra a Buser  - um aplicativo que conecta passageiros a empresas de ônibus fretado. O marco regulatório já conta com mecanismos para lidar com eventualidades que afetem a capacidade das concessionárias.

Esses três casos guardam fortes semelhanças. Em todos eles há uma inovação (como é o caso de Uber, Skype ou Buser) que melhorou o bem-estar dos usuários e, exatamente por isso, há também o incômodo entre aqueles que ofertam serviços no mercado em que essas inovações se inserem, ainda que não sejam diretamente concorrentes.

Enquanto a inovação beneficia de modo difuso a sociedade em geral e mais diretamente seus usuários, as perdas potenciais recaem sobre um grupo bem identificado, com meios e motivos econômicos para se mobilizar para frear o avanço da inovação e, assim, proteger a renda que extraem desses serviços.

A discussão da vez é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 574, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, que trata do modelo de negócio da Buser, que conecta passageiros potenciais a empresas de fretamento eventual de ônibus. Essas empresas, por sua vez, exercem uma atividade que existe há anos, amplamente regulada pela ANTT. A plataforma reduz os custos de transação entre passageiros e empresas de fretamento, o que leva a uma utilização mais eficiente dos ônibus e a redução dos custos de mobilidade - o que permite que mais pessoas realizem seus desejos de viagem.

Não há muita controvérsia sobre os ganhos advindos dessa inovação. Há, contudo, um ponto que vem sendo recorrentemente vocalizado pelos que consideram necessário impor restrições aos aplicativos, por conta de seus potenciais efeitos sobre as empresas concessionárias.

Em síntese, argumenta-se que a concessão recebida pelas empresas de ônibus tradicionais funciona como um pacote de serviços, nem todos lucrativos, havendo, por parte da concessionária, a obrigação de ofertar o serviço público mesmo quando uma determinada viagem ou horário não remunerar os seus custos.

Há aqui uma ideia - que não se demonstra com dados - de subsídio cruzado. Seria necessário realizar ganhos acima do normal em algumas viagens para compensar as viagens em que a concessionária teria prejuízo. Já o fretamento eventual por aplicativo poderia concentrar suas atividades apenas nas viagens rentáveis, o que inviabilizaria o serviço regular, que não teria mais como subsidiar as viagens não rentáveis. Para quem defende essa tese, o remédio para esse problema seria impor restrições regulatórias “simétricas” ao serviço dos aplicativos, o que significaria proteger o monopólio da concessão pública. O argumento acima, contudo, merece duas ressalvas, uma de ordem factual, outra de natureza normativa.

A primeira é a ausência de efeitos da entrada dos aplicativos sobre a demanda por transporte regular por ônibus. Dados da ANTT para 2018 (os mais recentes disponíveis) mostram que não houve queda de passageiros nas rotas que a Buser passou a operar naquele ano. Ao contrário, houve aumento similar ao observado nas demais rotas regulares de ônibus. Não há, portanto, qualquer indício real de “desvio de demanda” ou de “concorrência desleal”.

Esses resultados corroboram outro estudo, elaborado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que concluiu, em um caso similar, que a demanda atendida por motoristas ligados a Uber não se deu pela substituição de táxis, mas sobretudo pela expansão da demanda em decorrência da maior conveniência e preços mais baixos ao consumidor final.

Do ponto de vista normativo, mesmo que fossem observados efeitos substanciais de queda na demanda de passageiros pelas linhas regulares, impor restrições artificiais à Buser, por exemplo, seria análogo a impedir ligações de voz sobre IP a fim de assegurar a renda das empresas de telefonia fixa para fazer frente às suas obrigações regulatórias ou impedir o uso de e-mails porque poderiam reduzir a utilização dos Correios. A política pública não deve voltar-se à proteção de rendas de monopólio, mas fomentar a inovação.

O marco regulatório já conta com mecanismos para lidar com eventualidades que afetem a capacidade de concessionárias em prosseguir prestando o serviço público. Se um evento externo afetar de modo significativo o equilíbrio econômico-financeiro das concessionárias, estas têm direito a uma revisão de contrato.

O poder público, por sua vez, nada tem a perder porque esta revisão resultaria da melhoria da mobilidade e da ampliação do serviço de transporte de ônibus fretado, que cumpre todas suas obrigações tributárias e trabalhistas. Está absolutamente claro de que lado está o interesse público. A inovação deve fluir em sua plenitude, em benefício último das pessoas que gozarão de menores custos de mobilidade.