O Globo, n. 32677, 24/01/2023. Opinião, p. 3

Esquinas obscuras do Brasil

Carlos Andreazza


Não havia condições para golpe. Mas é preciso atentar para a percepção — o imaginário — dos milhares que se moveram contra a República. Viviam — vivem — num cosmo em que aquele ataque, a captura dos palácios, seria gancho para a tomada do Estado pelos militares.

Eram milhares ali; e milhões os que — sob graus variados de exposição ao discurso delirante — tinham contato diário com a pregação de que a derrubada do sistema, submetidos os Poderes, estaria próxima.

Não havia condições materiais para golpe; mas estavam emitidos os sinais à confiança em que a intervenção militar viria, o próprio estímulo a que os destruidores progredissem. Não ficariam sozinhos. O Exército logo chegaria. Essa era a fé.

Braga Netto — logo, Bolsonaro — não cifrara a que não perdessem as esperanças? A existência dos acampamentos, nas barbas dos quartéis-generais, era indicativa de que o apoio militar não faltaria na hora decisiva. Por meses, o comando do Exército abrigou e protegeu, em área militar, um universo paralelo golpista que incubaria até célula terrorista.

E ao Exército — para robustecer a fortaleza encorajadora na mente golpista — somava-se a Polícia Militar do Distrito Federal, a de Ibaneis Rocha e Anderson Torres (Bolsonaro, logo). Eram muitas e múltiplas as mensagens de que havia retaguarda. Especificamente no dia 8, a forma como, conduzidos pela PM, os invasores puderam vencer as linhas de defesa dos palácios mostrava que linha de defesa não existia.

O acampamento em Brasília continuou intocável, entrincheirado pelo Exército, mesmo depois de terroristas — com trânsito ali — haverem tentado explodir caminhão carregado de querosene no aeroporto.

O raciocínio era simples e atraente: se os militares nos franquearam a segurança da porta dos quartéis, e se nos protegiam e facilitavam o avanço à festa de Selma, por que não estariam conosco quando enfim conquistássemos os prédios? Tomaríamos os espaços, o governo reagiria, e eles garantiriam a desobediência e a implantação do novo regime. Essa era a cabeça.

Tudo isso tinha lastro nas comunicações — alucinadas para nós — que circulavam no zap-profundo. Um sistema de crenças que impulsionou aquelas gentes a invadirem Supremo, Congresso e Planalto; este último assaltado, portas abertas, sem a mais mínima defesa da guarda presidencial.

Um sistema de crenças mirabolante impulsionado por — atenção — gestões bem concretas.

Ou não teremos visto o Exército, canhões em riste, formar barreira contra o Brasil de modo a garantir que os golpistas pudessem voltar ao acampamento livres do alcance imediato da polícia então já sob intervenção?

Os golpistas delirantes evoluíram sob estímulos reais. Daí por que os riscos continuem. Eis o contexto que forja o dilema sobre criticar a atividade de Alexandre de Moraes.

Se os riscos permanecem, como lhe botar reparo? Os acampamentos acabaram. Mas continuam. Vão acampados milhões de mentes. E será ingenuidade supor que a dissolução física significaria desmobilização e falta de apoio em círculos militares.

Penso, porém, que precisamos — ainda que sob apedrejamento — tratar da operação de Moraes.

Tenho dúvidas sobre se a administração do ministro evitou cenário pior — como parece convencionado — ou deu corpo ao inimigo fácil de que o bolsonarismo precisa. Talvez as duas coisas. Fato é que, mesmo com os inquéritos, o 8 de janeiro ocorreu — com financiadores e facilitadores desinibidos.

A situação é inquietante. Convida à paralisia; ao não enfrentamento público de preocupação honesta. Afinal, houve as invasões. Como criticar as decisões de Moraes? Aquele domingo as legitimaria.

Compreendo, entretanto, que o modo como o juiz combate o problema, por grave e urgente que seja, contrata um problema — de tamanho imensurável — para o futuro. Aprendi com a Lava-Jato. E lembro que, no inquérito dito das Fake News, de objeto em constante transformação, Moraes mandou — ainda em 2019 — censurar uma revista que reportara passagem desgostosa para Dias Toffoli. Não foram poucas as vezes em que se excedeu desde então.

Na hipótese preponderante em que se admite — o STF admitiu formalmente — que circunstância excepcional autoriza medidas de exceção, seria necessário ao menos a prudência de avaliar-projetar como se pousará a geringonça. Será possível aterrissar? Voltará o gênio à lâmpada, uma vez investido — pela covardia do Estado — de ser as instituições contra o capeta? Os riscos continuam.

Muitos dos atos de Moraes são inconsistentes com a Constituição que pretendem proteger. E o impasse, que planta a angústia, é que o mesmo que defende a democracia alimenta o espírito do tempo autoritário.

A desejada volta à normalidade exige que olhemos para isso. Para os precedentes que vão plantados; a que togados outros — por causas que democratas considerem menos virtuosas — ajam. Não nos esqueçamos de que, tal e qual o guarda, há o juiz nas esquinas obscuras do Brasil.