O Globo, n. 32676, 23/01/2023. Saúde, p. 12

Sem remendos

Karolini Bandeira


Uma das promessas da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, a retomada do Programa Mais Médicos é trabalhada com celeridade pelo Ministério da Saúde, em especial pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde, chefiada pelo médico sanitarista Nésio Fernandes. Mas ao contrário da primeira versão do programa, o foco não será em estrangeiros — como os cubanos — mas nos brasileiros.

Assim, o programa que visa ampliar o atendimento médico em localidades remotas do país e zonas pobres das metrópoles — que foi criado na gestão de Dilma Rousseff e alterado sob o governo de Jair Bolsonaro — vai prever incentivos para profissionais formados no país.

Segundo Fernandes, a proposta em estudo prevê, além do foco nos brasileiros, a contratação de médicos estrangeiros, mas desde que eles tenham feito o exame Revalida, processo unificado para revalidação de diplomas médicos estrangeiros compatíveis com as exigências de formação das universidades brasileiras.

Neste redesenho do programa, conforme antecipou o GLOBO, profissionais estrangeiros irão ocupar as vagas remanescentes, e, para os cubanos que já atuam no Mais Médicos, a pasta estuda editar uma MP para estender o prazo de autorização. Mas esta é a opção B.

Com as estratégias, a nova gestão tenta agradar a classe médica, majoritariamente crítica do programa desde a criação por aceitar profissionais estrangeiros sem Revalida. Entretanto, até agora as mudanças não entusiasmam representantes da categoria.

Carreira de estado

— Querer remendar o Mais Médicos não é a solução. Incentivos monetários não são suficientes, precisamos de projetos estruturados e fortes, como uma carreira de estado — aponta o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), César Fernandes.

Na primeira versão do Mais Médicos, lançada em 2013 pelo então ministro da Saúde Alexandre Padilha para levar médicos às cidades periféricas e no interior do país, cerca de 80% dos profissionais que aderiram ao programa eram cubanos, em operação intermediada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

As críticas iam tanto pela falta de revalidação do diploma como outros pontos mais ideológicos, como a porcentagem que o governo da ilha retinha do salário de cada profissional atuando no Brasil.

A avaliação do governo e de especialistas é que agora o país possui maior número de médicos do que no ano de adoção do programa. Há dez anos, o Brasil tinha 1,9 médico por mil habitantes e, atualmente, essa média está em 2,5.

Para o representante da AMB, o Mais Médicos deixou muitas máculas à categoria. A principal foi a contratação de estrangeiros “sem comprovação de competências profissionais” para atender a população. O “programa dos sonhos” de Fernandes envolve carreira de estado com ascensão profissional.

— Um exemplo paralelo é a carreira judiciária. Podemos não ter médicos em locais de difícil acesso, mas temos juízes. Um curso de medicina, com a residência, dura quase dez anos, e o profissional precisa ser reconhecido pela preparação com possibilidade de crescimento — diz.

O presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Gutemberg Fialho, acredita que trazer médicos de fora sem exigir o Revalida não deve sequer ser uma possibilidade cogitada na nova política:

— Não podemos ter profissionais de medicina atendendo sem ao menos saber se tiveram a formação adequada — defende.

Para os profissionais brasileiros, ele pede remuneração justa, condições de trabalho, plano de cargo, estabilidade e insumos para poder exercer a profissão.

Atual presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), José Hiran Gallo concorda com o posicionamento da Fenam. Ele aponta que flexibilizar a exigência do Revalida é “flertar com o risco”.

— De um lado, a assistência de primeira linha, nas grandes capitais, onde a exigência do CRM se mantém. De outro, uma assistência de segunda linha, nos pequenos municípios do interior ou nas periferias dos grandes centros, onde podem estar pessoas sem formação reconhecida —comenta.

Gallo também defende a adoção de carreira pública no lugar de um programa. Para ele, o primeiro modelo garante uma boa infraestrutura nos locais de atendimento e remuneração compatível com a responsabilidade do profissional.

‘Médicos pelo Brasil’

Em 2019, o Ministério da Saúde de Luiz Henrique Mandetta alterou o modelo e o nome do programa, tornando-o “Médicos pelo Brasil”. Na ocasião, foi anunciado que a ação não incluiria profissionais cubanos em um primeiro momento. Mudou-se, também, a dinâmica de repasses de valores para municípios e o chamamento dos médicos, contratados via CLT por processo seletivo —antes contratados por bolsas sem vínculo empregatício.

Na última semana, a ministra Nísia Trindade disse que não pretende mudar as atuais regras do Médicos Pelo Brasil. A nova cara do Mais Médicos, portanto, deve ter características do programa estabelecida no governo de Jair Bolsonaro, que, durante a campanha, usou as modificações para atacar a política do PT e Cuba.