O Globo, n. 32676, 23/01/2023. Opinião, p. 3

Cartões corporativos, princípios e crime

Fernanda Tórtima


Não é de hoje que o uso de cartões corporativos por ocupantes de cargos da administração pública federal é alvo de reiteradas — e, por vezes, consistentes — críticas por parte da opinião pública e publicada.

A legislação pertinente não traz limites e critérios claros a respeito das despesas a realizar por meio do instrumento de pagamento, deixando a cargo do portador — nem sempre iluminado pela moralidade e pelo respeito à coisa pública — a decisão acerca de quanto e como gastar.

Em breve síntese, uma compra com cartão corporativo equivale a uma contratação direta, não precedida de licitação. O Decreto 5.355/2005 dispõe que o Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) deve ser usado para pagamento de despesas na aquisição de materiais e contratação de serviços enquadrados como suprimento de fundos. Este, por sua vez, tem limites estabelecidos em normas administrativas do Ministério da Fazenda, a exemplo da Portaria 95/2002.

Questionamentos relativos à impessoalidade, moralidade e eficiência de determinados gastos sempre poderão ser feitos. Será igualmente possível defender que o cartão corporativo só possa ser usado em despesas de valor realmente diminuto, exigindo a realização de licitação em outras situações.

No entanto, independentemente dos critérios que se devam estabelecer para a utilização do instrumento de pagamento em questão, caberá ao agente público ser transparente, submetendo dados sobre despesas ao escrutínio público e suportando as consequências advindas do controle exercido não apenas pela população, mas também por distintos órgãos de fiscalização.

Também decorrência da publicização dos gastos com cartão corporativo é a possibilidade de instauração de investigações, de natureza cível ou criminal, seguidas da eventual deflagração das respectivas ações judiciais, bastando ao Ministério Público, para tanto, simples consulta ao Portal da Transparência.

Muito mais relevante do que aferir a totalidade dos valores globais gastos é analisar se a forma utilizada, o local onde as despesas foram feitas e a natureza do material e dos serviços são compatíveis com a finalidade do instrumento de pagamento.

Despesas absolutamente incompatíveis com as atividades desenvolvidas por agentes públicos — realizadas em locais onde não haveria bens ou serviços em quantidade ou qualidade compatíveis com o exercício da função ou mesmo com a rotina dos portadores do cartão corporativo — não apenas podem consistir em malferimento do princípio da moralidade, mas até mesmo poderiam, eventualmente, configurar indício da prática de crimes, como o peculato. Daí a importância de, afastada a hipótese de necessidade de preservação de segredo de Estado, não decretar sigilo sobre as despesas feitas em cartões corporativos.