Valor Econômico, v. 20, n. 4847 28/09/2019. Opinião, p. A18
 

O Brasil e a ‘Lei de Wagner’
Carlos Von Doellinger

 

Adolf H.G. Wagner (1835-1917) foi um economista alemão, da antiga escola histórica-institucional, que ficou famoso pelo enunciado da sua “lei de Wagner”.

A “lei de Wagner” foi estabelecida como uma lei de tendência de longo prazo, a partir de constatações históricas, a exemplo de outras famosas “leis”, como a lei de Engel, o paradoxo de Leontief, o efeito Tanzi, etc.

Em termos muito resumidos, estabelece que a proporção de gastos públicos em relação ao PIB tende a crescer historicamente à medida que as sociedades evoluem economicamente e tornam-se mais exigentes por bens e especialmente serviços públicos em geral, o que também ajuda a explicar o crescimento histórico do setor terciário nas economias. Na prática, para fins de verificações empíricas, utiliza-se a renda per capita diretamente correlacionada a esse percentual de despesas públicas sobre o PIB.

Ao longo do tempo, seja por correlações tipo “cross section” com grande número de países, seja pelo uso de séries temporais para países individuais, ou por combinações das duas metodologias, somaram-se evidências empíricas robustas da validade dessa “lei”, conquanto sempre com “desvios”, mais ou menos significativos, em torno da tendência  (normalmente utilizando uma curva crescente em escala logarítmica).

As mais antigas evidências empíricas datam de 1958, com a publicação do livro de Richard Musgrave e Alan T. Peacok: “Classics in the theory of public finance”, que pioneiramente divulgaram para a tradição anglo-saxônica os escritos originalmente no idioma alemão. Todavia os escritos de Wagner, assim como de outros economistas em idioma, alemão, fugiram de fato da ortodoxia clássica. Países da AL e Caribe com renda per capita semelhante à do Brasil têm gasto público menor em relação ao PIB.

Posteriormente surgiram outros trabalhos com dados empíricos para a economia americana, valendo citar o dos autores David, B. E., e Ducombe, B.F.: “Public Finance”, Holt, Rinehart e Winston, Inc. 1972. Porém, dentre as evidências mais recentes e robustas sobressai a mais recente constatação que aparece no livro editado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 2019, intitulado “Melhores Gastos para Melhores Vidas” (Alejandro Izquierdo, Carola Passimo e Guilhermo Vuleta).

Trata-se nesse caso de um alentado tomo de mais de 400 páginas, com muitos anexos, gráficos, diagramas e dados. Essa obra mais recente apresenta evidência cabal, diria mesmo irrefutável, da evidência empírica. Nele vamos encontrar uma ilustração dessa correlação que é apresentada de uma forma bastante “impressionista”, em um gráfico na página 51 do livro.

Utilizando uma amostra diversificada de 59 países, incluindo os países desenvolvidos da OCDE, outros países europeus, asiáticos e países da América Latina e Caribe, verifica-se nesta análise “cross section” uma significativa aderência à tal “lei de Wagner”.

Lá são consideradas quatro grandes categorias básicas de despesas: massa salarial, despesas de capital, despesas com bens e serviços e transferências. Essas diversas componentes são dissecadas de forma abundante no sentido de um exame profundo da quantidade, qualidade e da produtividade desses gastos, estendendo-se aos diversos países que compõem a amostra.

Todavia, e na impossibilidade de se examinar neste artigo os muitos detalhes técnicos, a simples observação do gráfico ressalta duas grandes discrepâncias, em dois países da América Latina: Argentina e Brasil, que aparecem com grandes desvios em relação à curva tendencial apresentada.

Em ambos os casos, a discrepância é no sentido de maior proporção de gastos públicos, especialmente da massa salarial e transferências, em relação à renda per capita. Ou seja, em outras palavras, esses países parecem gastar muito, mas também muito mal, em relação ao nível de renda per capita, o que demonstra de forma cabal a baixíssima produtividade desses gastos no atendimento das demandas da sociedade por bens e serviços públicos.

No caso do Brasil, por exemplo, sabemos que os dispêndios públicos superam 40% do PIB, para renda per capita de US$ 13.670, a preços em PPC de 2016. Na Argentina, único caso  que consegue ser mais discrepante que o Brasil, mais de 80% do PIB, para renda-per capita de US$ 13.589, também a preços em PPC do mesmo ano.

Em comparação, os demais países da América Latina e Caribe com renda per capita semelhante à do Brasil, apresentavam médias de gastos em torno de 25% do PIB.

Há também discrepâncias, diríamos, no “bom sentido”. Ou seja, países com níveis de dispêndio sobre o PIB bem abaixo do padrão normal em relação à renda per capita, o que indica alta produtividade dos gastos públicos influenciando a renda per capita. É o caso, por exemplo, de Irlanda, a mais discrepante nesse “bom sentido", Suíça, Luxemburgo, Coreia e Noruega.

Para a média dos países da OCDE a proporção ficava em torno de 80% do PIB, porém com renda per capita de cerca de US$ 40 mil. No caso dos Estados Unidos, a proporção entre 2015/16 foi de algo próximo a 70% do PIB, para renda per capita de US$ 52.888.

Voltando à situação específica do Brasil cabe a pergunta: alguma surpresa com esse resultado? Não é isso que precisamente constatamos no dia a dia de nossas vidas?

O mais cruel, no entanto, é que essa discrepância aumentou de forma significativa ao longo da última década. Para nosso consolo essa discrepância também aumentou, embora de forma mais tênue, em alguns outros países, como Equador, Trinidad-Tobago e Uruguai.

Mas será que essas outras exceções realmente nos consolam? Ou talvez o fato da discrepância da Venezuela, que não foi considerada, pela absoluta impossibilidade de qualquer medida empírica confiável. O grande mérito dessa constatação da lei de Wagner é a sua dramaticidade evidente. Será que vamos continuar a ignorar essa distorção e seguir em frente, gastando muito e mal, de forma improdutiva, na nossa marcha batida da insensatez, parafraseando o famoso livro publicado nos anos 80, da historiadora inglesa Bárbara Tuckman?

A proposta para o início da reversão dessa tendência está obviamente na proposta do governo de implementação do chamado “pacto federativo”, cuja finalidade é permitir não apenas o controle dos gastos, mas sua melhor alocação em função de nossas prioridade e necessidades básicas. Ou talvez mesmo, a essa altura do campeonato, a proposta de uma ampla reforma do Estado, com avaliação da produtividade dos gastos. Uma tarefa longa e muito profunda, porém a alternativa pode ser pior: a ameaça, já nos próximos anos, de paralisia gradativa da máquina pública, o famoso “shut down” já referido em escritos anteriores.

Não podemos mesmo imaginar que o Brasil, discrepante de todos, encontre novas soluções criativas, a exemplo das tristemente famosas “pedaladas fiscais”.

A decisão estará nas mãos de nossa classe política e do Executivo. Quem viver verá!