O Globo, n. 32668, 15/01/2023. Mundo, p. 22

Rumo à energia verde

Ana Rosa Alves


Quando se fala em energia, pensa-se de imediato nas correntes elétricas que recarregam celulares e acendem lâmpadas. Mas eletricidade é apenas uma fração da matriz energética de um país: a ela somam-se o combustível dos carros, o gás dos fogões, o diesel dos caminhões... Para neutralizar as emissões de gases-estufa até 2050 e evitar um cataclisma, uma transição verde generalizada é imprescindível.

Na contramão, o carvão, vilão-mor dos combustíveis fósseis, ganhou impulso com a guerra na Ucrânia e a crise energética por ela catalisada, dificultando ainda mais um já complicado processo. Em 2019, estimava-se que apenas 11,2% da energia consumida no mundo eram renováveis. Na América Latina, no entanto, o percentual chega a 25%, e a região tem bons exemplos no caminho da transição verde.

Os desafios são hercúleos e o Uruguai é um dos que se dispuseram a superá-los. Segundo o Balanço Energético Nacional uruguaio de 2021, 57% da energia usada no país eram renováveis. Bem acima da média, o percentual é resultado de uma iniciativa tomada em 2008, na Presidência do esquerdista Tabaré Vázquez (2005-2010 e 2015-2020).

 

As tecnologias relativamente acessíveis fizeram com que a eletricidade seja o primeiro ponto a ser abordado em uma nação assombrada por apagões. Se 35% da eletricidade gerada no Uruguai vinham de combustíveis fósseis em 2000, duas décadas depois, praticamente toda ela é limpa.

Ao GLOBO, o ex-diretor de Energia Ramón Méndez (2008-2015), arquiteto da transição no país, comparou o cenário no início do século a uma “tormenta perfeita”:

— Não tínhamos petróleo, gás, carvão, nenhum combustível fóssil. As possibilidades hidrelétricas já estavam esgotadas — disse. — Era uma época em que precisávamos fazer racionamento, mas o país crescia a taxas desconhecidas para nós, de 7%, 8% até 9%.

Todos os partidos juntos

Gerar eletricidade no Uruguai custava mais de US$ 1 bilhão, podendo passar de US$ 2 bilhões em anos de seca — bastante para uma nação cujo PIB há 15 anos era estimado em US$ 30,4 bilhões, segundo o Banco Mundial. Com Montevidéu “no fundo do buraco”, disse Méndez, a solução foi mirar no futuro com um plano de 25 anos. Mas a susceptibilidade a mudanças políticas era uma questão problemática.

— O que aconteceu entre a transição de Tabaré Vázquez para José Mujica (2010-2015) foi a criação de uma comissão com a participação de todos os partidos, e aí conseguimos transformá-la em uma política de Estado — disse ele, afirmando que havia dúvidas, mas “as alternativas eram piores”.

Tabaré Vázquez e Mujica são aliados, mas o plano foi mantido pelo atual mandatário, Luis Lacalle Pou, que lidera um governo de centro-direita. O foco agora é o que Montevidéu chama de “segunda transição energética” para despoluir seu setor de transportes, o maior emissor de CO2 do país.

Todas as mudanças já custaram cerca de US$ 7 bilhões — ou 9,8% dos US$ 71 bilhões do PIB uruguaio de 2022. Mas Montevidéu não precisou desembolsar tudo isso, já que o dinheiro veio principalmente de investimentos externos. Hoje, o custo anual da geração de eletricidade fica ao redor de US$ 600 milhões, metade do que se pagava em 2008.

Em 2020, 40% da eletricidade gerada no país era eólica; 30%, hidrelétrica; 20% vinham da biomassa; e 4%, de origem solar. Só 6% eram gerados por combustíveis fósseis, percentual que almejam zerar, com outras fontes permitindo equilíbrio: de dia, quase toda a matriz é abastecida pelas energias solar e eólica, com a hidrelétrica complementando.

Se o resultado é fenomenal, o próprio Méndez questiona como implementar uma política de Estado de longo prazo em sociedades polarizadas e com governos que não raro tentam aniquilar iniciativas dos antecessores. Crê, contudo, haver alguns segredos a fim de amenizar a dificuldade para chegar a acordos multilaterais que possibilitem mudanças a nível global.

O primeiro ponto é que agora o Uruguai não é vulnerável a guerras e outros fenômenos mundiais para sua eletricidade. O segundo, disse ele, é que “é muito mais simples pensar um modelo de país para 30 anos do que para cinco anos”.

— A curto prazo, a discussão é eleitoral, mas quando falamos do Brasil de 2040, todos vão querer energia renovável, menos emissões, tecnologia. É ter uma imagem de onde queremos estar e discutir o que precisa ser feito para chegar lá.

Desafios diferentes

Na Costa Rica e no Paraguai, líderes na geração de eletricidade renovável, a dependência é quase exclusiva das hidrelétricas — principalmente Itaipu, no caso paraguaio. Há, contudo, a falsa impressão de que o país é um expoente da sustentabilidade. A eletricidade correspondia a apenas 17% do total da energia consumida pelos paraguaios em 2019: 43% vinham da biomassa — lá, quase totalmente lenha— e 40% de derivados de petróleo, que no país não são usados em usinas termelétricas.

— A biomassa é utilizada principalmente pelas casas, para cozinhar. O resto é usado pelas indústrias para gerar calor — disse o engenheiro ambiental Guillermo Achucarro, especialista em mudanças climáticas. — E por que gerar calor? Não é mais barato usar energia elétrica? Não, é mais barato desmatar e usar a lenha.

Para Achucarro, deve haver uma transição equitativa, que possibilite uma industrialização sustentável, algo que demanda repensar as divisões de poder em um dos países mais pobres da região. Apesar da grande utilização da biomassa, 60% da produção hidrelétrica paraguaia são exportados para países como Brasil e Argentina:

— Historicamente, a energia elétrica foi usada no Paraguai para o benefício de poucos com muitíssimo poder. Transicionar energeticamente implica uma disputa econômica — disse ele, ressaltando que é necessário vontade política. — Precisamos de uma reforma tributária, uma reforma agrária integral e popular.

Brasil avança

O Brasil, por sua vez, tem cerca de 50% de sua matriz renovável, mas quando se leva em conta só a eletricidade, a geração renovável chegou a 84% em 2020, segundo dados da Agência Internacional de Energia Renovável. As hidrelétricas ainda são responsáveis pela maior fatia: responderam sozinhas por 56,8% da eletricidade gerada nacionalmente em 2021, segundo a Empresa de Pesquisa Energética.

As fontes eólicas e solares, que em 2021 respondiam por 10,6% e 2,5%, respectivamente, da matriz elétrica nacional, crescem rapidamente. A geração de energia das usinas fotovoltaicas, por exemplo, aumentou 72,7% em dezembro em relação ao mesmo mês de 2021, segundo a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica.

— O Brasil parte de uma situação mais favorável porque já temos uma matriz elétrica bastante renovável, mas também porque a infraestrutura existente permite a integração de mais renováveis de forma mais barata — disse Amanda Ohara, coordenadora de Energia do Instituto Clima e Sociedade, chamando atenção principalmente para as energias eólica e solar.

As perspectivas para o Brasil, afirma ela, poderiam ser ainda melhores, frente a reveses recentes. Entre eles, a prorrogação até 2040 da energia produzida por térmicas de carvão em Santa Catarina, promulgada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.