Valor Econômico, v. 20, n. 4838 17/09/2019. Brasil, p. A3

Ajuste fiscal: gradualismo ou tratamento de choque?

 Carlos Von Doellinger

 

Nos anos 60 ocorreu no Brasil um amplo debate sobre alternativas de combate à inflação. O saudoso professor Mário Henrique Simonsen, que posteriormente (anos 70) viria a ser Ministro da Fazenda, defendia com muito ardor e convicção o combate “gradualista” à inflação, anomalia crônica que afligia a economia brasileira e que parecia desafiar os receituários usuais para seu combate. Os economistas ditos “ortodoxos”, como Eugênio Gudin, duvidavam daquela alternativa e propunham o “tratamento de choque”, no estilo preconizado pelo Fundo Monetário Internacional.

Pois bem; o tal “gradualismo”, que almejava minimizar os custos sociais da estabilização, venceu o debate na época, mas não a inflação! De meados dos anos 60 a 1994, quando se implementou o Plano Real, tentou-se o tal “gradualismo”, que além de ineficaz acabou degenerando em hiperinflação, especialmente por conta do mecanismo inercial (indexações) que desafiava todas as medidas de caráter monetário ou fiscal.

O Plano Real, que foi precedido por medidas de ajuste fiscal com a criação do Fundo Social de Emergência, eliminou os mecanismos inerciais, e por medidas de política monetária e de ajuste das contas públicas dos entes federados, seguidas de privatizações e concessões, constituiu-se de fato num “tratamento de choque” eficaz. A inflação foi praticamente eliminada e a economia voltou a crescer.

Hoje estamos diante de um dilema de natureza estratégica algo semelhante, muito bem ilustrado pela apresentação do Projeto do Orçamento Anual para 2020 (PLOA 2020): Como proceder ao ajuste fiscal das contas do setor público brasileiro, anomalia que nos atormenta desde sempre, mas que pode chegar ao ponto de ameaçar de paralisia a máquina do setor público nos próximos anos? Vamos seguir por uma trajetória “gradualista”, conforme sugere os indicadores projetados pelo PLOA, ou por alguma alternativa de “choque”, em certa medida sugerida por algumas medidas previstas no projeto do chamado “pacto federativo” (desindexação, desvinculação e desobrigação, os chamados “3ds”)?

Manutenção da linha gradualista de ajuste fiscal manterá o círculo vicioso déficit-dívida nos próximos 4 anos.Vejamos então alguns indicadores ilustrativos do PLOA para os próximos anos.

Talvez o mais abrangente, que indica a evolução da situação de desajuste fiscal, seja o “coeficiente da dívida bruta do setor público em relação ao PIB”. Segundo os dados do PLOA 2020, esse percentual cresce de 80,2% do PIB, em 2019, para 83,5% em 2022. Já o mesmo coeficiente para a “dívida líquida” cresce de 58,7% para 66,2% no mesmo período.

O motivo desse crescimento é a persistência do “déficit nominal consolidado do setor público”, que inclui despesas de juros da dívida. Estimado em 6,4% do PIB em 2019, cresce para 6,5% em 2020 e se reduz para “apenas” 6,1%, em 2021 e em 2022. Ou seja, a permanecer essa linha “gradualista” de ajustamento fiscal, perpetua-se o “círculo vicioso” déficit-dívida para os próximos quatro anos.

Há até um exercício aritmético muito simples para esse círculo vicioso. Supondo que a indexação permaneça, seguindo a inflação do ano anterior, teríamos um crescimento de despesas para algo entre 3,5% e 4%, no mínimo, ao qual se acrescenta um crescimento adicional “vegetativo” de despesas de no mínimo 4% a 5%. Por outro lado, com o crescimento projetado para o PIB de 2%, ou no máximo 2,5%, a receita cresceria nessa mesma proporção, lembrando que receitas não são indexadas; seguem o nível de atividade da economia. Nessas condições, e mesmo admitindo algum crescimento “real” das receitas (mas sem aumentos da já elevada carga tributária), a tendência seria a perpetuação dos desequilíbrios entre despesas e receitas.

O resultado mais pernicioso de tudo isso é o estrangulamento das despesas chamadas “discricionárias” (não obrigatórias), especialmente dos investimentos públicos, que irão se resumir a algo como 0,5% do PIB.

O PLOA 2020 foi elaborado, evidentemente, obedecendo às regras orçamentárias e constitucionais em vigor, que de fato “amarram” mais de 95% das despesas, por meio de vinculações, obrigatoriedades e notadamente indexações, e que, portanto, perpetuam o crescimento real de mais de 80% dos valores orçados a cada ano.

A se manter esse tipo de trajetória “gradualista” de ajuste fiscal, incorre-se de fato no risco de paralisia do setor público, com amplas consequências negativas para a economia como um todo. Lembrando que para os demais entes (Estados e municípios) a situação é ainda mais grave.

A alternativa aparentemente mais sensata seria algo como uma terapia de “choque”: a imediata eliminação das “amarras” orçamentárias. A começar pela mais importante de todas, a indexação das despesas, porque esse mecanismo cria fluxos adicionais de gastos e impede os ajustes.

As desvinculações e as chamadas “desobrigações” também são urgentes, porque só assim pode-se de fato recuperar a eficácia da gestão fiscal, exercer prioridades, realocar fundos, eliminar gastos já desnecessários; enfim, recuperar de fato a gestão orçamentária e fiscal. A opção pelo penoso ajuste “gradualista” é a permanência da estagnação econômica ou mesmo a volta da recessão!