Valor Econômico, v. 20, n. 4836 13/09/2019. Legislação e Tributos, p. E2

A contraditória contabilidade fiscal

Osmar Simões 



O Poder Executivo vem divulgando em doses a sua proposta de reforma tributária. Entre os pilares apontados pela Receita Federal está uma modificação relevante do imposto de renda (IR), com previsão inicial de redução da alíquota do IR das empresas, alterações para as pessoas físicas e a desvinculação tributária dos padrões contábeis internacionais  (IFRS - International Financial Reporting Standards).

A Receita Federal argumenta que as empresas já apresentam dois balanços, um de acordo com o padrão internacional e outro para atender às exigências do Fisco. E complementa, essa dualidade existiria em outros países, citando Estados Unidos e Reino Unido.

Não há nada de moderno e mais burocrático que instituir uma segunda contabilidade para atender exclusivamente ao Fisco.Com todo respeito, a posição defendida pela Receita Federal nos parece contraditória no conceito e imprecisa nas justificativas.

Entre os mantras do Executivo está o da liberdade econômica, desburocratização e modernização do ambiente de negócios. Não há nada de moderno e mais burocrático que instituir uma segunda contabilidade para atender exclusivamente ao Fisco. Eis a contradição.

Quando do advento da Lei 11.638/2007, que iniciou a harmonização do sistema contábil brasileiro com o padrão internacional, todos aclamaram porque haveria maior uniformidade, clareza e segurança nas informações financeiras das empresas, cuja base única seria a contabilidade.

As autoridades fiscais também acolheram as alterações e estabeleceram o regime tributário de transição, previsto na Lei 11.941/2009. Por fim adveio a Lei 12.973/2014, que completou a harmonização do padrão contábil com o regime de apuração fiscal.  Como solução foi instituído um livro fiscal eletrônico, que prevê e descreve os ajustes ao lucro contábil necessários para apuração do lucro sujeito ao imposto de renda - o chamado lucro real. Vale anotar que naquela ocasião as autoridades já avaliaram a ideia do “two books of account” e concluíram que a proposta representaria um aumento do custo para as empresas. 

Nesse sentido veja-se o item 15.2 da Exposição de Motivos da Medida Provisória 627/2013. Assim, a conceito proposto pela Receita Federal, de duas contabilidades, se confirmado, representará maior burocracia para a atividade empresarial, maior intervencionismo do Estado e custos adicionais. O conceito também pode ser contraditório à luz das boas práticas de governança, transparência e conformidade, exigidas das empresas na atualidade. A dualidade de procedimentos na geração de informações financeiras ocasiona insegurança aos usuários e amplia a vulnerabilidade dos controles.

Quanto às justificativas apontadas, em primeiro lugar nenhuma empresa possui dois balanços. O balanço patrimonial em determinada data é peça única, levantado com base na escrituração contábil regular. A ciência contábil desenvolveu conceitos e metodologias confiáveis e adequados para controlar, apurar e demonstrar os efeitos econômico-financeiros que afetam a pessoa jurídica em determinado lapso temporal.

Os primeiros enunciados de contabilidade internacional datam de 1973, com a formação do International Accounting Standards Committee (IASC), substituído em 2001 pelo IASB (International Accounting Standards Board). Atualmente mais de cem países adotam o padrão IFRS, definido pelo IASB. Ora, com o elevado teor científico aplicado à contabilidade internacional e a aceitação desse padrão pelos variados stakeholders, inclusive para tomada de decisões financeiras puras, em que medida tal padrão contábil não seria objetivo?

Como regra, as economias desenvolvidas e as emergentes principais, que tenham em seu ordenamento o IR para empresas, adotam como base de cálculo o lucro apurado a partir do resultado contábil. Ajustes na base fiscal e regras especiais poderão existir nas legislações de cada País, mas o ponto de partida é sempre comum, a contabilidade.

Nos Estados Unidos, citado pela Receita Federal, houve uma reestruturação no sistema de tributação das empresas em 2017. De um lado, uma redução na alíquota nominal do IR federal, que passou para 21%, e de outro, o estabelecimento de uma série de regras especiais e novas hipóteses de incidência, tais como “Base erosion and anti-abuse tax” (BEAT) e o “Global intangible low-taxed Income” (GILTI). Todavia, a legislação americana não se dissociou da escrituração contábil para apurar valores e bases fiscais.

O que existe desde há muito no IR Americano, e continuou, são limites e restrições para certas deduções na base fiscal, assim como regimes especiais de tributação para determinados tipos de empresas, como as S Corporations, REITS e Partnerships. No Reino Unido, por seu turno, o IR base devido pelas empresas é 19% sobre o lucro (17% a partir de 2020, não havendo muitos regimes diferenciados. Da mesma forma que Brasil e Estados Unidos, lá também o que existe são limitações e restrições a certas deduções da base de cálculo. Assim, a ideia de que os dois países citados teriam uma contabilidade fiscal nos parece imprecisa, porque na realidade eles possuem sistemas assemelhados ao nosso atual, qual seja, ponto de partida no resultado contábil geral e observância de ajustes e limites para determinar a base fiscal.

Em resumo, não achamos necessário estabelecer um segundo regime contábil para propósitos fiscais. Acreditamos que o regime atual de apuração, baseado no lucro contábil e sujeito a ajustes controlados em livro fiscal eletrônico, continua a ser eficaz e adequado.