Valor Econômico, v. 20, n. 4836 13/09/2019. Opinião, p. A16

Após Coaf, PGR e Polícia Federal, a vez da Receita


 

A demissão do secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, atende a conveniências e objetivos do presidente Jair Bolsonaro, sem, no entanto, afastar definitivamente a possibilidade da criação de um imposto nocivo, assemelhado à antiga CPMF. Cintra tornou-se um alvo por uma série de razões formais - entre elas, pelo fato de um subordinado ter apresentado o imposto sobre transações financeiras (ITF) como algo oficial, quando o presidente, no hospital, não havia decidido a questão.

Mas o sucedâneo da CPMF não saiu do horizonte, mesmo após o twitter do presidente: “A recriação da CPMF ou o aumento da carga tributária estão fora da reforma tributária por determinação do presidente”. Ao pé da letra já estavam. O que se estudava, o ITF, não era uma contribuição e tinha diferenças de incidência em relação à malfadada CPMF. A rigor, na discussão, onde o ITF entrava era para substituir outros tributos, em especial a folha de pagamentos das empresas, dependendo da calibragem de sua alíquota. O aumento da carga tributária, por fim, não estava entre as cogitações do chefe da Receita e do ministro da Economia.

Além disso, o ministro Paulo Guedes é, e continua sendo um defensor da ideia. Marcos Cintra, cujo repertório tributário é marcado pela ideia fixa do imposto único, não foi escolhido à toa para o cargo, por indicação de Guedes. Ele ingressou no governo para isso, provavelmente confiante de que Guedes convenceria o presidente de que o imposto sugerido, pela sua facilidade de arrecadar tributos, poderia sem problemas fazer parte de um projeto de reforma tributária.

É sempre difícil enxergar coerência nas declarações do presidente Jair Bolsonaro, feitas por capricho ou ao sabor dos acontecimentos, em geral contraditórias e com frequência, modificadas depois. Quando Guedes saiu em público com mais ênfase em defesa do imposto sobre transações, como na entrevista que concedeu ao Valor (9 de setembro), pareceu claro, ou pelo menos pode ter sido entendido assim pelo secretário da Receita e seus auxiliares, que havia carta branca para sua criação.

As reações de Bolsonaro sobre o assunto ao longo do tempo mudaram da irritação inicial para a complacência. Em entrevista à “Folha de S. Paulo” na semana passada, Bolsonaro finalmente pareceu aquiescer. Estabeleceu como condição que deveria haver compensações ao contribuinte, caso contrário Guedes levaria “porrada”. O presidente continua confiando nos caminhos que o ministro traçou para a economia e parece ter sido convencido sobre o ITF pelos argumentos de Guedes. Apostar no enterro do imposto é arriscado.

Mas outras ideias povoam a cabeça do presidente há algum tempo, que se relacionam à Receita, mas nada tem a ver com a nova CPMF, como foi batizada. A cobrança de uma parcela em atraso de um irmão do presidente foi o suficiente para que Bolsonaro dissesse com estardalhaço a denúncia de que sua família estava sendo vítima de uma “devassa” da Receita.  Pouco depois, mais críticas, turvas desta vez. O “entorno” do presidente, um sujeito oculto, convenceu-o a querer trocar José Nóbrega de Oliveira, delegado da Receita do Porto de Itaguaí, por onde as milícias recebem armas e de onde partem drogas para a Europa. Houve reação do corpo técnico e o segundo homem da Receita, João Paulo Ramos Fachada, teve de deixar o cargo. O episódio reforçou a impressão de que Cintra não era, nem seria, um obstáculo para Bolsonaro, que ao mesmo tempo abriu fogo contra a superintendência da Polícia Federal no Rio e, depois, disse que poderia exonerar o delegado geral da PF, Maurício Valeixo, indicado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro.

Ainda que a teimosia de Cintra na defesa de um imposto execrado pela esmagadora maioria dos economistas tenha lhe rendido reprimendas do presidente (que se entendia com Guedes sobre o assunto), sua demissão abre caminho para que Bolsonaro mexa no último órgão de fiscalização ainda intocado por ele. Cintra mal tinha se demitido quando voltou a se falar na “reestruturação” da Receita o que pode significar apenas, o que é mais provável, uma troca de pessoas nos principais cargos de direção.

Após as mudanças no Coaf, da escolha a dedo do novo titular da Procuradoria-Geral da República, das intervenções na Polícia Federal, que não terminaram, o presidente pode colocar alguém mais alinhado a ele na Receita. Com muito barulho, aparentemente por nada, o presidente Jair Bolsonaro parece estar conseguindo aparelhar o Estado a seu gosto.